Em um cenário eleitoral polarizado, educação é tópico de consenso. Mas a promoção do ensino de qualidade não depende só da abertura de escolas. É preciso pensar em como ser mais eficiente no papel de educar os mais pobres Juliano Spyer (*)
Estamos atravessando um momento de polarização de pontos de vista e mesmo assim pouca gente discordaria da afirmação: “A solução para o Brasil é investir massivamente em educação pública de boa qualidade.” Educação é geralmente entendida como o remédio para mitigar a desigualdade que está na raiz de males como a violência urbana.
Eu morei durante 15 meses em um povoado trabalhador na “periferia da periferia da periferia” de Salvador. E aprendi que os maiores promotores da escolaridade no chamado “Brasil profundo” hoje não são as escolas e os professores, mas a Internet e as igrejas evangélicas.
Vou explicar essa afirmação resumidamente neste artigo, mas se você quiser saber mais, leia o capítulo 5 do meu livro Mídias Sociais no Brasil Emergente, lançado pela Educ e disponível a venda em papel ou gratuitamente em PDF.
Contexto
Entre abril de 2013 e agosto de 2014 eu vivi em um povoado que vou chamar pelo nome fictício de Balduíno. Eu estava lá como antropólogo fazendo a pesquisa de campo para um projeto de doutorado sobre como o pobre brasileiro entende e usa as mídias sociais.
Sobre o tema da educação, eu aprendi que o acesso ao ensino público em Balduíno mudou radicalmente nos últimos 30 anos.
Os adultos do povoado tiveram à disposição 4 anos de curso, mas seus filhos hoje têm 12 e podem terminar o ensino médio. E o acesso à escola hoje é facilitado por causa de transporte, material e merenda oferecidos universalmente.
Por isso, o número de alunos que nos anos 1980 era de algumas dezenas de crianças passou hoje para mais de 2.000 jovens em um povoado de 15.000 habitantes. E isso inclui aqueles mais vulneráveis que precisam estar matriculados para receber auxílios como o Bolsa Família.
Uma creche para os mais velhos
Apesar de todo esse avanço, a escola não é percebida pela maioria das famílias como um lugar para os filhos adquirirem tipos de treinamento para melhorar suas perspectivas profissionais.
Na verdade, para muitos pais e mães, a escola é apenas uma espécie de creche para seus filhos não passarem o dia desacompanhados nas ruas, no período em que os adultos estão trabalhando. Ou seja, os locais querem ter onde deixar seus filhos, mas não se interessam pelo desempenho deles nas aulas.
Minha pesquisa registrou vários motivos para esse desinteresse:
Os professores geralmente não moram na localidade e por isso pais e mães têm medo, por não conhecer a vida pessoal desses profissionais, que eles façam mal aos filhos (como predadores sexuais, por exemplo)
A família popular frequentemente desconfia da consequência da educação formal que, para eles, torna filhos indispostos ao trabalho manual árduo e promove atitudes desrespeitosas às hierarquias familiares
O currículo das escolas é produzido por educadores de classe média que, por isso, são distantes da realidade e dos valores do mundo popular
Também professores geralmente trazem valores de classe média que se traduzem em atitudes ofensivas como reclamar abertamente da ignorância de estudantes que "passam anos na escola e não sabem nem ler direito"
O lado culto da ignorância
A antropóloga Claudia Fonseca escreveu em seu Família, Fofoca e Honra (baixe) sobre a segregação invisível que existe na sociedade brasileira.
Para ela, os únicos momentos de encontro entre pessoas escolarizadas das camadas médias e altas e o mundo popular se dá nas conversas de manhã com a empregada doméstica e no momento do assalto.
Por causa dessa distância, as camadas letradas percebem o pobre como se ele pensasse e visse o mundo pelas mesmas perspectivas, como se a única diferença entre ricos e pobres fosse a renda.
Mas esse brasileiro é um desconhecido íntimo. Historicamente e praticamente ele vive em outro mundo, com valores morais, normas, gostos e regras sociais e familiares próprias.
Mas se nesse contexto a escola geralmente não é eficiente em seu papel de educar, alguns tipos de conhecimento vem se tornando relevantes e chegam aos segmentos populares via internet e via igrejas evangélicas.
Internet, a outra escola
A internet é geralmente demonizada por professores e isso não é diferente em Balduíno. Professores locais acusam as mídias sociais de serem uma distração a mais para estudantes que já não têm muitas motivações para prestar atenção nas aulas.
Mas essas afirmações não levam em consideração alguns aspectos dessa questão:
A internet é o primeiro motivo que esses estudantes têm para querer e poder praticar a leitura e a escrita fora das escolas. É a primeira geração que tem essa motivação
Diferentemente do currículo feito a partir de valores alheios àquela realidade, a internet tem fartura de conhecimento relevante como ensinar a consertar um aparelho celular ou aperfeiçoar a técnica para quem é cabeleireiro
Mais inusitado ainda: o jovem popular melhora sua redação ao usar as mídias sociais porque tem vergonha de ser ridicularizado por seus pares ao cometer erros de ortografia em arenas públicas como a linha do tempo do Facebook ou ao participar de grupos no WhatsApp.
Leitura e protestantismo
Antes ainda da internet, havia uma situação em Balduíno que motivava a pessoa a aprender a ler e a escrever: passar a frequentar cultos evangélicos.
A igreja evangélica representa uma espécie de estado de bem-estar social alternativo que ajuda quem atravessa momentos difíceis –doença, desemprego, violência doméstica, casos de dependência química na família etc.
Mas, assim como acontece no Facebook, é também constrangedor para quem começa a frequentar essas igrejas perceber que todos ali acompanham o que o pastor está dizendo pelas páginas da Bíblia. Menos esses novatos.
Está na raiz da chamada Revolução Protestante a ideia de que o indivíduo deve ser capaz de ter um vínculo direto com o divino. E isso depende de ele ou ela ser alfabetizado para ler a Bíblia.
Por isso, não é raro que em lugares como Balduíno igrejas evangélicas ofereçam cursos de alfabetização de adultos. E a maioria dos universitários da região vem de famílias evangélicas.
Concluindo
Não estou argumentando aqui que a escola seja inútil. Ou que o poder público deva subsidiar a compra de smartphones e estimular a leitura distribuindo Bíblias.
Em primeiro lugar, eu quis demonstrar que a promoção do ensino de qualidade não depende apenas da abertura de escolas, e que uma parte do desinteresse pela escola vem de a educação disponível levar valores de classe média para estudantes que não são de classe média.
Também mostrei aqui como o constrangimento social –na internet e nas igrejas– tem sido um motivador para brasileiros das camadas populares darem o salto para usar cotidianamente a leitura e a escrita.
Há, nesse cenário, dois desafios. Em vez de alfabetizar o brasileiro popular a partir das nossas referências, podemos nos alfabetizar como educadores e cientistas sociais na farta bibliografia que existe sobre o Brasil popular. E se houver uma prioridade a ser estabelecida: ela seria formar professores das camadas populares para trabalhar nos bairros em que esses profissionais já vivem e são conhecidos.
(*) Juliano Spyer é antropólogo do Alexandria Big Data. É doutor pela University College London e seu livro Mídias Sociais no Brasil Emergente pode ser baixado aqui.
Fonte: EL PAÍS Brasil
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