Então vos hão de entregar para serdes atormentados, e matar-vos-ão; e sereis odiados de todas as nações por causa do meu nome: Mateus 24:9
As lembranças do petroleiro aposentado se espalham pelo vilarejo da Síria onde ele cresceu. A capela de adobe onde ele se casou. A igreja de concreto que ele ajudou a construir e que se enchia de fiéis nos feriados. A comunidade fortemente unida de famílias cristãs assírias que viveram juntas nesta área por gerações.
Hoje o lugar é um vilarejo de fantasmas.
A igreja é uma pilha de escombros; o campanário e a cruz foram derrubados ao chão, como uma árvore cortada. As ruas de terra estão cobertas de mato e são percorridas por cães vadios. As casas, quase todas, estão vazias, seus donos espalhados por Alemanha, Austrália, Estados Unidos e outros países.
“Antigamente havia gente morando em todas as casas”, contou o petroleiro aposentado, Ishaq Nisaan, 79. “Agora, somos só eu e meu vizinho na minha rua.”
A mesma coisa aconteceu com todos os vilarejos vizinhos, onde durante muitos anos os cristãos assírios, uma das várias minorias religiosas da Síria, cultivaram a terra e criaram animais nas margens do rio Khabur, no nordeste do país.
A milícia terrorista Estado Islâmico atacou a área em 2015, sequestrando mais de 220 moradores. Os jihadistas foram expulsos alguns meses depois por forças curdas e combatentes locais. Depois de receber resgates exorbitantes, libertaram a maioria dos reféns que haviam feito.
Mas, antes de partir, os extremistas demoliram muitas das igrejas da região. E desde então, quase todos os prisioneiros libertados fugiram com suas famílias e seus vizinhos, esvaziando a comunidade.
“A vida aqui é boa, mas não há gente”, disse Ramina Noya, 23, integrante da câmara local que governa a área. Ela permaneceu na região, mas a maioria de seus parentes foi para os EUA.
Sete anos de guerra na Síria provocaram o êxodo de metade da população, levando milhões de refugiados a deixar o país. À medida que o governo de Bashar al-Assad retoma mais território dos rebeldes que tentaram afastá-lo do poder, é possível que algumas pessoas voltem.
Mas outras comunidades vulneráveis, como a de Tel Tal, ficaram tão traumatizadas que talvez nunca se recuperem, deixando buracos permanentes na sociedade síria.
O número de cristãos vem caindo há décadas no Oriente Médio, com perseguições e pobreza provocando migração em grande escala. O EI considerava os cristãos infiéis e os forçava a pagar impostos especiais, intensificando o abandono de regiões da Síria e do Iraque.
O êxodo foi acelerado nesta região da Síria.
Antes do início da guerra, em 2011, cerca de 10 mil cristãos assírios viviam em mais de 30 povoados da região, que tinha mais de duas dúzias de igrejas. Hoje restam apenas 900 moradores, e há missas regulares em apenas uma igreja, segundo Shlimon Barcham, da Igreja Assíria do Oriente.
Alguns dos povoados estão completamente desertos. Em um deles, restaram cinco homens que ficaram para proteger as ruínas da Igreja da Virgem Maria, cujos alicerces os jihadistas dinaminataram. Outro povoado ficou com apenas dois moradores –uma mãe e seu filho.
Barcham não acredita que muitas pessoas vão retornar. “Todo o mundo diz coisas bonitas sobre o desejo de voltar, mas não acredito que voltem”, ele explicou.
Os assírios são uma minoria natural do Oriente Médio cuja origem remete ao império assírio da antiguidade. Suas principais comunidades modernas estão no Irã, no Iraque, na Síria, na Turquia e em alguns poucos países ocidentais. Eles integram várias igrejas, incluindo a Igreja Síria do Oriente e a Igreja Católica Caldeia, e eles falam um dialeto do aramaico.
Quando o EI iniciou seu avanço violento pelo Iraque e a Síria, os jihadistas mataram ou escravizaram yazidis e muçulmanos xiitas, mas procuraram ganhar dinheiro com os assírios, provavelmente supondo que seus parentes no exterior pagariam caro para vê-los libertados.
A tática funcionou. Antes mesmo de o EIo emergir, os assírios já vinham deixando o Oriente Médio havia décadas. Muitos assírios da diáspora se uniram para socorrer seus irmãos feitos reféns na Síria, promovendo eventos para levantar fundos e enviando dinheiro do exterior para o pagamento dos resgates, que foi feito por um bispo assírio local, disse Barcham.
Os extremistas exigiam até US$ 50 mil (R$ 195 mil) para soltar reféns individuais, mas em muitos casos aceitaram valores menores. A igreja nunca revelou exatamente quanto pagou ao EI, mas presume-se que tenha sido mais de US$ 1 milhão (R$ 3,9 milhões).
Nem todos os reféns foram salvos. Três reféns usando macacões cor de laranja foram assassinados em um vídeo que os jihadistas divulgaram para incentivar apoiadores a pagar pela libertação de outros. Uma mulher sequestrada nunca voltou. Moradores do vilarejo presumiram que ela tenha sido forçada a se casar com um combatente do EI.
Aqueles dias de medo e violência nos povoados ficaram para trás, mas as cicatrizes que deixaram estão em toda parte.
Sentado sozinho diante de sua casa em Tel Tal, Oshana Kasho Oshana, 81, disse que foi sequestrado por combatentes do EI e mantido como prisioneiro durante 30 dias enquanto seus parentes negociavam sua soltura. Eles acabaram pagando US$ 13 mil (R$ 50,7 mil) de resgate.
Muitas pessoas de sua família já estavam vivendo fora do país, e, depois de ser libertado, Oshana foi viver com dois de seus filhos na Alemanha. De seus sete filhos, hoje apenas um ainda está vivendo na Síria, mas não no vilarejo.
Oshana ainda volta da Alemanha para seu vilarejo pelo menos uma vez por ano, mesmo que isso signifique ficar sozinho em sua casa em um povoado praticamente deserto.
“É uma cidade fantasma, mas nosso vilarejo é importante para nós. Não podemos abandoná-lo”, ele explicou.
No povoado de Tel Shamiran, restaram apenas Samira Nikola, 65, e seu filho adulto.
Também ela foi sequestrada pelo EI, com seu marido e quatro outros familiares, três dos quais crianças. Depois de libertada, ela voltou para o vilarejo. Encontrou sua casa saqueada. A picape da família e duas vacas leiteiras tinham sumido, roubadas pelos jihadistas.
Samira colocou a casa em ordem novamente e agora trabalha com seu filho, criando galinhas e cultivando pepinos, uvas e azeitonas na horta ao lado de sua casa de adobe.
Seus outros filhos estão na Austrália e na Alemanha, mas ela não quer partir. “Apenas mantenha as pessoas perversas longe daqui”, ela disse. “É só isso que pedimos a Deus.” Seu filho, Nabil Youkhanna, 35, disse que permaneceu em Tel Shamiran para não deixar sua mãe sozinha, mas não sabe até quando vai poder ficar, porque a comunidade é tão pequena.
“Estamos ficando, mas até quando?”, ele disse. “Se eu quiser me casar, não vou poder. Não restaram moças aqui.”
Uma milícia assíria local patrulha a área para afastar saqueadores, mas Youkhanna disse que não confia mais nos árabes dos povoados vizinhos, porque imagino que eles tenham cooperado com o EI.
“Antigamente, nos víamos na estrada e nos cumprimentávamos”, ele falou. “Hoje, ninguém abre a boca.”
Fonte: Folha de São Paulo
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