A intransigência do papa Alexandre VI levou a décadas de carnificina em nome da fé
Publicadas meio milênio atrás, as 95 teses do líder da Reforma Protestante ainda se mostram atuais.
A “festa conjunta para Jesus Cristo”, organizada pela Federação Luterana Mundial e pelo Vaticano, é um ato notável de união depois de meio milênio de inimizade e derramamento de sangue. Ela estava em preparativos na Páscoa em toda a Europa continental, mas a festa não aconteceu. De modo geral, as comemorações neste ano do 500º aniversário da publicação, por Martinho Lutero, de suas 95 teses – o texto-chave em seu ataque ao abuso do poder e das Escrituras pelo papa – deverão passar despercebidas. O que é muito injusto com Lutero.
Quando o novo protestantismo – palavra inventada pelos inimigos de Lutero na Dieta de Speyer em 1529 – chegou à Inglaterra, depois que Henrique VIII isolou Roma, talvez não fosse especificamente luterano, mas não teria existido se não fosse por Lutero, ao afirmar que era possível adorar a Deus seguindo as Escrituras e não o papa. O rei explorou a brecha que Lutero havia criado nas defesas de Roma para lançar uma igreja nacional, embora, de início, ajudado e incentivado por Thomas More, tenha atirado farpas contra “essa serpente venenosa” que desafiava o domínio da Igreja Católica na Europa.
Vivemos hoje em um tempo secular, cético, científico, quando a religião é habitualmente considerada irrelevante. Por isso, Lutero tende a ser desprezado como austero, distante e bidimensional, mais adequado às páginas empoeiradas dos livros de história do que ao século XXI. Tanto que ele é muitas vezes confundido com Martin Luther King, cuja importância é compreendida muito mais facilmente.
Como um dos formadores da Europa contemporânea, porém, e um populista que ganhou proeminência em uma onda de descontentamento com o establishment entre os que se sentiam isolados e esquecidos (parece familiar?), sua história nunca teve uma ressonância mais imediata.
Em sua Alemanha natal, pelo menos, ainda se aprecia isso. Cerca de 30% da população continua luterana, incluindo a chanceler Angela Merkel, que é filha de um pastor luterano. Recentemente, um modelo de Playmobil do frade agostiniano segurando a sua pena e a Bíblia, tornou-se o brinquedo de vendagem mais rápida que seu fabricante já colocou no mercado local, com 34 mil vendidos nas primeiras 72 horas de comercialização.
Um caso de celebração de um herói local? Faz parte, mas é pouco. A relevância contemporânea de Lutero para todos nós está em compreender como e por que um monge obscuro de uma universidade do interior, a anos-luz dos corredores do poder na Roma renascentista, orquestrou uma revolução tão intensa que pôs de joelhos o catolicismo até então todo-poderoso.
Certamente, não foi por causa da originalidade de seus argumentos teológicos. Nenhum deles era novo. Tudo tinha sido aventado antes, alguns por santos, muitos pelos chamados de heréticos por Roma por sua inconveniência, que tiveram suas vidas extintas em fogueiras nas praças de maneira tão fortuita quanto as velas em seus altares dourados.
O que Lutero fez nas 95 teses – que, incidentalmente, foram enviadas ao arcebispo local, e não pregadas a uma porta, um exagero imaginoso proposto por seus seguidores após sua morte – foi aproveitar uma profunda veia de alienação entre os pobres em uma Alemanha fragmentada. Eles estavam decepcionados não só com os excessos e a corrupção do papa e de sua Igreja, mas também com seus governantes no quebra-cabeça de Estados que formavam seu país.
Lutero tocou um acorde em uma congregação que se sentia explorada e ignorada: de um lado, forçada a pagar por basílicas luxuosas em Roma, pela venda de peças inúteis de pergaminho conhecidas como indulgências, que “garantiam” um lugar no céu aos entes queridos (ou a si próprios), e, de outro, no mundo secular, ao ver os velhos meios de que dependia sua subsistência derrubados pela ascensão de uma economia monetária.
As 95 teses – e grande parte do que Lutero disse posteriormente em público conforme sua mensagem se espalhava pelo continente, até sua excomunhão em 1521 – foram obra de um revolucionário clássico, que, nos termos atuais, queria secar o “pântano do Vaticano”.
Fluente na língua das ruas, o inegavelmente carismático Lutero escreveu a maioria de seus textos mais conhecidos e inflamatórios não no latim da Igreja, mas em alemão, chegando a produzir, em 1522, a primeira tradução do Novo Testamento em alemão coloquial e, em 1534, uma tradução de toda a Bíblia.
Os que se sentavam nos bancos não precisavam mais confiar na palavra dos padres e bispos, em vez da palavra de Deus. Ele percebeu a força de apelar acima dos “especialistas” muito antes de Michael Gove descobrir isso no movimento pelo Brexit.
Ao trabalhar com os donos de novíssimas imprensas, Lutero foi um dos primeiros a identificar o potencial do que era a rede social de sua época como um meio alternativo de disseminar seu novo Evangelho anti-establishment. Panfletos de versões editadas de seus textos se espalharam como marolas pela Alemanha, depois a Europa, Roma e até a Inglaterra. Em uma era de analfabetismo generalizado, ele garantiu o envolvimento dos que não sabiam ler incluindo ilustrações, usando xilogravuras cruas, muitas vezes satíricas, do ateliê de seu amigo e colega de Wittenberg Lucas Cranach, o Velho.
Assim, quando ele se postou diante do sacro imperador romano-germânico e dos príncipes e prelados da Alemanha na Dieta de Worms, em 1521, defendendo seus textos sob risco de morte, Lutero tinha multidões nas ruas movidas em sua defesa, instigadas por panfletos e cartazes que enchiam a cidade.
Por mais que quisesse se livrar daquele “monge insignificante”, como o rotulou o papa Alexandre VI, a sociedade estabelecida não podia entregá-lo a seu destino por medo de incendiar uma revolta. Assim, ao contrário de possíveis reformistas anteriores, Lutero viveu para pôr em prática suas teorias.
Todos os que atraem o apoio popular, entretanto, inevitavelmente o perdem um dia. Para Lutero, esse momento foi em 1525, quando a insatisfação que havia muito fermentava entre os pobres da Alemanha ferveu na Guerra dos Camponeses. Lutero foi obrigado a escolher um lado e apostou sua sorte com os príncipes que haviam abraçado seu protestantismo (e alguns que não o haviam).
Não foi uma questão de autopreservação. Sua doutrina dos “dois reinos” – deixar ao Estado as questões terrenas e à Igreja as buscas espirituais, que eram o sangue vital de Lutero – era sinceramente postulada, mas sua aplicação foi considerada uma cruel traição por muitos entre os rebeldes que tinham depositado suas esperanças nele como salvador.
As consequências da rebelião de Lutero, entretanto, não se limitaram a um período particular, à Alemanha ou mesmo a uma religião organizada. Sua mensagem essencial era que, no fim da vida, cada fiel se postava nu diante de Deus para aguardar o julgamento eterno, tendo somente a Bíblia e a fé a protegê-lo. As “boas obras” que o catolicismo encorajava – ganhar pontos por ir à missa, fazer peregrinações, rezar para relíquias e contribuir para os cofres da Igreja – eram irrelevantes na salvação.
Ele estava assim desafiando toda a maneira medieval de fazer as coisas e o resultado foi notavelmente moderno. Pois Lutero defendia a consciência informada pela leitura das Escrituras, mais que os ditames das regras da Igreja. Leia a Escritura e tome a sua decisão. Isso, por sua vez, abriu a porta nos séculos XVII e XVIII às ideias iluministas de liberdade humana, livre expressão e até de direitos humanos, as quais moldam a Europa atual. Nossa capacidade de ler a palavra de Deus e rejeitá-la vem de Lutero – um resultado que ele não poderia ter previsto e que certamente o teria horrorizado.
Se isso soa abstrato demais, entretanto, há um último aspecto de Martinho Lutero que lhe dá uma relevância e um apelo tridimensionais. Quanto à coragem pura e altruísta, é impossível superá-lo. Ele pode ser lembrado como um frade rechonchudo da história, mas durante mil anos, antes do surgimento de Lutero, a Igreja Católica tinha sido uma das maiores potências da Terra, tão poderosa que definiu o calendário que o mundo usa até hoje, tomando como seu eixo o nascimento de Jesus Cristo.
Ele teve a coragem de enfrentar uma Igreja monolítica, na plena expectativa de que lhe custaria a vida, mas o fez assim mesmo, enfrentando o poderio da primeira religião realmente universal, em pessoa e muitas vezes sozinho, com uma paixão, intensidade e energia extraordinárias. O mais notável de tudo é que Lutero não apenas sobreviveu, como também triunfou, e somos todos melhores por causa dele.
Fonte: The Observer via Carta Capital
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