O chamado “direito ao esquecimento” será julgado em breve pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Na mesa, o pedido feito pela família de uma vítima de homicídio da década de 1950 – que quer impedir veículos de comunicação de relembrar a sua história sob alegação de violação de privacidade. Com repercussão geral, a ação na mais alta Corte brasileira vai definir um posicionamento único que deverá ser seguido pelo Judiciário. Mesmo com a Procuradoria-Geral da República posicionando-se de forma contrária à tese, quase um terço da jurisprudência em tribunais estaduais tem concedido o direito de se apagar da história fatos já noticiados.
Levantamento do jornal ‘O Estado de S. Paulo’ mostra que, de ao menos 94 processos já analisados por desembargadores no País, 67 negaram o pedido de se esquecer o passado. No entanto, 27 aceitaram a hipótese.
O direito ao esquecimento obriga retirar e apagar de páginas da internet conteúdos que associem o nome de qualquer pessoa a fato calunioso, difamatório, injurioso ou a um crime do qual ela tenha sido absolvida e sobre o qual não haja mais possibilidade de recurso. Para o advogado que representa a família Curi, Roberto Algranti Filho, o caso da jovem Aída Jacob Curi, estuprada e assassinada brutalmente aos 18 anos de idade em julho de 1958, no Rio, é exemplar e pode criar “critérios mínimos para a atividade de imprensa”.
Na avaliação de Algranti Filho, com o fim da Lei de Imprensa (2009), “ficou um vácuo em relação ao que é notícia de interesse público e aquilo que só diz respeito à família”. A defesa da família questiona a veiculação do caso no programa Linha Direta, da TV Globo, em 2004. “Se tudo é jornalismo, nada está protegido, nem a própria imprensa. O caso de Aída não tem interesse público, não é um caso que conta a história do País, não existem motivos para reabrir uma ferida e causar dor aos parentes”, diz o advogado.
Em seu parecer sobre o caso, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, lembrou que o direito ao esquecimento “ainda não foi reconhecido ou demarcado no âmbito civil por norma alguma do ordenamento jurídico brasileiro”. Portanto, segundo ele, “não pode limitar o direito fundamental à liberdade de expressão por censura ou exigência de autorização prévia”.
Embora o direito ao esquecimento tenha sido aprovado na Comissão de Constituição de Justiça (CCJ) da Câmara, ele ainda não foi votado em plenário. Ainda assim, acumulam-se processos em que o “princípio” é posto em pauta – alguns deles tendo como base o caso julgado no Tribunal de Justiça da União Europeia.
Equívoco
Além do questionamento da família Curi, um outro recurso envolvendo um dos acusados, e depois absolvido, pela chacina da Candelária já chegou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e muitos outros rondam os tribunais estaduais. “Ainda é um tema muito recente. Um princípio que ainda causa muito debate e dúvidas. Nesse sentido, o caso Curi não foi um bom exemplo para ser tomado como “repercussão geral”, diz o professor de Direito Constitucional da FGV Direito e coordenador do Supremo em Pauta, Rubens Glezer. “É um equívoco. O caso dos Curi está muito mais relacionado à ofensa do que ao esquecimento. A decisão do STF, seja qual for, pode causar mais problemas e interpretações inconclusivas”, afirma Glezer.
Para o professor de Direito Constitucional Luiz Guilherme Arcaro Conci, da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), é imperativo separar a questão entre o cidadão comum e aquele que exerce cargo público ou que, porventura, tenha feito algo de repercussão nacional. “É preciso levar em conta a situação e a particularidade de cada caso. O que é vida pública não pode ser protegido pela lei do esquecimento. Uma coisa é quem teve um problema na vida pessoal aparecer na busca do Google para o resto da vida. Outra, bem diferente, é um político, com mandato, querer tirar seu nome de uma denúncia”, diz.
A advogada Taís Gasparian, que já atuou em diversos casos em que o direito ao esquecimento foi ao menos citado, diz que a hipótese de aplicá-lo é “como queimar bibliotecas, uma volta à Idade Média”. “Quem pode decidir o que é histórico ou não?”, questiona Taís. Ela afirma que, “na esfera pública, mesmo os erros de informação podem ter relevância para estudos futuros”. De acordo com a advogada, o perfil atual do STF não deve “abrir as portas para a Lei do Esquecimento”.
Para Patrícia Blanco, diretora do Instituto Palavra Aberta, “toda e qualquer regra que estabeleça a retirada de conteúdo ou link de acesso a determinado conteúdo fere a liberdade de expressão e de imprensa”. Patrícia diz acreditar, no máximo, em um código de autorregulamentação e voluntário, sem que haja a necessidade de uma nova lei que estabeleça esse procedimento. “Além disso, já existe no Brasil um amplo arcabouço jurídico capaz de proteger o cidadão de qualquer abuso ou excesso que possa ser cometido”, afirma.
História
Para o professor de História da PUC-SP Luiz Antônio Dias, a função do historiador é “lembrar o que a sociedade quer esquecer”. Para ele, o direito ao esquecimento não poderia criar barreiras para, por exemplo, o Brasil se deparar com sua própria história. “Separar o personagem público do personagem histórico é difícil. Eu entendo que a família de um torturado na ditadura militar não queira falar sobre o assunto, mas, ao mesmo tempo, o depoimento dele tem uma importância histórica fundamental. Em tese, sou contra a Lei do Esquecimento, mas não acho que seja um tema simples. Consigo entender o lado de quem, às vezes, prefere esquecer.”
O doutor em História Social, Leandro Karnal, afirma que o direito ao esquecimento “deveria ser possível”. “O resgate da privacidade é um desafio novo. Nunca estivemos tão expostos. Logo, surge uma nova meta ou utopia: o esquecimento. O debate é muito contemporâneo: quem tem direito a controlar a memória da minha vida? Todos devem ter acesso permanente aos dados sobre mim? Ser esquecido é um direito, mas será exequível? Talvez, em breve, incluamos o anonimato como direito fundamental do homem”, diz.
Fonte: Veja
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