A convocação do cobrador de impostos Mateus, e o posterior banquete com publicanos e pecadores, Mt 9.9-13
(Mc 2.13-17; Lc 5.27-32)
9-13 Partindo Jesus dali, viu um homem chamado Mateus sentado na coletoria e disse-lhe: Segue-me! Ele se levantou e o seguiu. E sucedeu que, estando ele em casa (de Mateus), à mesa, muitos publicanos e pecadores vieram e tomaram lugares com Jesus e seus discípulos. Ora, vendo isto, os fariseus perguntavam aos discípulos: Por que come o vosso Mestre com os publicanos e pecadores?
Mas Jesus, ouvindo, disse: Os sãos não precisam de médico, e sim os doentes. Ide, porém, e aprendei (a compreender) o que significa: Misericórdia quero e não holocaustos (espontâneos); pois não vim chamar justos, e sim pecadores [ao arrependimento].
Observação preliminar
É provável que também em Cafarnaum os publicanos de lá tinham de taxar os peixes que eram trazidos à cidade. Desse modo Mateus, antes de ser coletor, já deve ter sido conhecido dos pescadores que acompanhavam Jesus. Aceitar um publicano no círculo dos doze causou permanentemente um forte escândalo entre os judeus, nos quais vigorava uma intensa aversão aos publicanos, circunstância da qual Mateus esteve sempre consciente (Schlatter, p. 302).
Por ser publicano, Mateus dominava duas línguas. O funcionário da coletoria precisava relacionar-se com todos, com os moradores e com os viajantes.
Isso também é importante para a época em que o evangelho de Mateus foi escrito. No mundo palestino não havia escritores jovens. Nele se veneravam os idosos. São os presbíteros que determinam a palavra, sobretudo quando se dirige em forma escrita à comunidade toda. Também a tarefa especial que foi dada ao apóstolo não desenraizou a valorização da idade avançada prescrita pela tradição, como evidenciam 1Pe 5.1s e 3Jo 1. Considerando que Mateus já atuava em negócios financeiros a serviço de Herodes antes de sua vocação, ele não era mais um jovem naquela ocasião. Por isso não demorou mais de cerca de 20 anos após a morte de Jesus para que Mateus estivesse em condições de falar à comunidade como presbítero (cf. Schlatter, p. 304).
Cafarnaum situava-se na estrada que levava do interior da Ásia até o mar Mediterrâneo. Em decorrência disso, deve ter havido naquela cidade uma coletoria importante (de Herodes Antipas).
Estava localizada fora da cidade, próxima ao lago. Assim se explica a expressão de Lucas: “Ele saiu” e a de Marcos: “Jesus saiu outra vez e foi para o lago”. A descrição da situação por Mateus também coincide com essas duas informações. Jesus devia ter motivos prementes e importantes para incluir uma pessoa dessa classe no número de seus confidentes.
A história anterior da cura do paralítico tinha evidenciado que as hostilidades contra ele já tinham começado. Contudo, Jesus não tem medo. Segue seu caminho reto traçado pelos céus. Convoca um publicano para segui-lo, fazendo dele um apóstolo. Com essa medida Jesus faz algo muito escandaloso para os judeus e especialmente para os fariseus e escribas.
Nesses cinco versículos ocorre duas vezes a expressão: “publicanos e pecadores”. Os publicanos são símbolo da desonestidade, da arbitrariedade, do egoísmo e da ânsia de vingança. São pessoas que, para enriquecerem rapidamente, estão a serviço dos inimigos da pátria. São pessoas que renegam seu povo, sua pátria e a fé.
Quem queria tornar-se publicano tinha de saber que:
• Estará separando-se conscientemente de Deus, do povo, da pátria;
• Cometerá consciente e continuamente pecados graves contra Deus, o povo e a pátria;
• Terá de suportar o desprezo de todas as pessoas decentes;
• Será castigado eternamente no inferno, segundo a concepção judaica.
Por isso os publicanos são equiparáveis a usurários, ladrões, assassinos, saqueadores, assaltantes e prostitutas. São pessoas das quais se afirma: “São amaldiçoadas!” (Jo 7.49).
É dessa sociedade de malditos e infames que Jesus chama um homem para junto de si. Poderíamos pensar que o Senhor dificilmente poderia ter sido mais desastrado e incorreto. Caberia perguntar: Será que, com essa atitude, o Senhor não está justamente aprovando o criminoso? Um escândalo mais grave o Senhor não poderia ter provocado nos decentes e piedosos. Era mesmo necessário que o Senhor agisse dessa e não de outra forma, com uma atitude tão radical? Pois os pescadores que o seguiam como discípulos ainda eram pessoas honradas, eram israelitas em quem “não havia dolo” (Jo 1.47).
Porém, o que dizer nesse caso? Escolher um amigo dentre essa companhia mentirosa e irremediavelmente perdida? Esse é um modo de agir inaudito e incompreensível! O quanto esse procedimento escandalizou as pessoas revela-nos uma nota que se encontra 150 anos mais tarde num discurso de zombaria feito por Celso contra os cristãos, no qual ele proclama: “Jesus tomou publicanos canalhas para serem seus alunos”.
Retornemos para a história. A vocação de Mateus é de natureza tão súbita e incomum que não podemos ter dúvida de que Jesus recebeu um impulso imediato do alto. O caráter superior da vocação evidencia-se igualmente na determinação e rapidez com que o chamado foi aceito.
Jesus diz: Segue-me. O verbo grego akolutheo = “seguir” tem, como primeiro significado, “ir atrás de”. No Oriente a mulher anda atrás do marido. O aluno de profeta andava atrás do seu mestre. Isso expressa a honra que se presta ao que está em posição superior. Esse costume também tinha se instalado entre os rabinos. O mestre andava à frente do aluno ou montava num jumento. É dali que também os discípulos adotaram o costume. No entanto, entre seguir os rabinos e seguir a Jesus havia uma diferença fundamental. Os alunos dos rabinos, após um ou dois anos, quando o ensino terminara, dissolviam o relacionamento com o seu mestre.
Essa possibilidade é excluída no caso de Jesus. O chamado de Jesus é total. Ele vale para a vida toda. Jesus prende a si o discípulo com toda a sua existência. Desligado de Jesus, a existência de discípulo acaba. A vocação por Jesus, porém, não é apenas exigência, mas “dádiva e exigência” ao mesmo tempo. Somente o chamado de Jesus tem o poder de soltar uma pessoa de sua existência natural e de suas amarras.
Depois da triste página de vida de publicano e pecador, seguiu-se outra página. Começou a surgir a luz. Mateus tinha enganado a outros. Agora reconheceu que ele próprio estivera sendo logrado. O que antes lhe era prazer, tornou-se pesar. Nesse estado íntimo, o Senhor Jesus o viu, ele que é amigo dos publicanos e pecadores. Diz-se expressamente de Mateus: Ele se levantou. Incontáveis foram as vezes em que deve ter-se levantado e se sentado novamente. Dessa vez, no entanto, levantava-se para nunca mais ocupar o mesmo lugar. Para Mateus foi uma virada decidida e integral. Não ergueu-se somente um pouco de sua cadeira. Levantou-se e seguiu atrás de Jesus. A ponte estava derrubada, não havia como voltar atrás. Também hoje existem dois tipos de pessoas. Aquelas cujas vidas se assemelham a um estar sentado e outras cuja vida é um andar e apressar-se, um prosseguir seguindo a Jesus.
Jesus não o confronta com a vida e o comportamento que manteve até então. Não se deve derrotar ainda mais pessoas que estão batidas na sua consciência. Um raio de alegria tinha penetrado no coração de Mateus. “Ele largou tudo” (Lc 5.28), uma afirmação grandiosa, pois possuía mais que os pescadores no lago de Genezaré!
Mateus tinha iniciado sua trajetória de discípulo e encerrado sua vida de publicano (Mateus tem o mesmo sentido de “Teodoro”, que significa “doado por Deus”). Nesse ponto decisório de sua vida, ele ofereceu ao Senhor uma ceia festiva. Certamente aconteceu com a mais profunda concordância de Jesus que nesse banquete se encontrassem não apenas Jesus e Mateus, mas também os discípulos de Jesus e muitos dos antigos colegas de Mateus, publicanos e pecadores. Ali, pois, está sentado Jesus, no meio do mundo, no meio das pessoas deste mundo. Celebra comunhão de mesa com essa escória da humanidade. No Oriente a comunhão de mesa, muito mais que entre nós, constitui um “símbolo da amizade e da comunhão de vida”. Ao dizer: Tenho comunhão de mesa com este ou aquele, estou afirmando: Essas pessoas são meus amigos, são meus companheiros, meu círculo de relações.
Quando os fariseus viram que ele comia com publicanos e pecadores, interpelaram os seus discípulos: Por que o mestre de vocês come com os cobradores de impostos e os pecadores? (Em Mt 11.19 os adversários, cheios de ódio, o chamam até de “comilão e beberrão”). O que impelia o Senhor a essas pessoas desprezadas? Amava ele o pecado, a sujeira, os trapos? Acaso pode-se atacá-lo com o dito: Diga-me com quem você anda e eu lhe direi quem você é? Não, ele não amava a injustiça do publicano, nem a os trapos do mendigo, mas o ser humano como tal. Ele não se relacionava com eles como um igual a eles, mas enquanto verdadeiro cura de almas via a enfermidade de suas almas. Muitos desses publicanos traziam dentro de si um profundo anseio de sair de sua nefasta rotina. Muitos sentiam intensamente o que é culpa e injustiça, admitiam que estavam cativos, reconheciam que assim não podiam continuar, tinham convicção de que estavam doentes, miseráveis, incuravelmente enfermos na alma. Muitos sabiam que necessitavam de um Salvador, motivo pelo qual de bom grado queriam ouvir e se dispunham a se entregar a uma nova vida.
Mas Jesus, ouvindo, disse: Os sãos não precisam de médico, e sim os doentes. Não vim chamar justos, e sim pecadores. Os fariseus se consideravam sãos, bons e honrados, que sempre estavam com a razão, que pensavam e diziam e faziam o que era correto. Reputavam-se sempre como melhores que os demais, que não necessitavam de Deus; que certamente lembravam de Deus, porém como um parceiro. Deus era para eles aquele que sempre de novo tomava conhecimento de suas boas ações e as registrava como pontos de crédito. Com base em todos esses créditos era para eles muito óbvio que se tornariam partícipes do céu (cf. o sermão da Montanha, 5.20ss).
“Deus, eu lhe agradeço que não sou como fulano ou beltrano” (Lc 18.11).
O publicano, em contraposição, sentia como vivia na injustiça e como Deus tinha razão. É por isso que Jesus se sentia chamado para quem sabia que vivia na injustiça, para quem estava enfermo na alma, e não para o saudável que dele não precisava. Não vim chamar justos, e sim pecadores ao arrependimento. Que inversão de todos os valores e de todas as medidas! Os pecadores são chamados e os sãos ficam de fora.
Como é arrasadora essa palavra para todos os justificados por si próprios e os satisfeitos, que argumentam com seu fiel cumprimento do dever e que reclamam benefícios para si por seu comportamento correto e inquestionável, porém possuem dentro de si tão pouco amor desprendido e misericórdia sincera.
Se somos tão frios diante de um morador de nossa casa, ou diante de um trabalhador ou colega que espera diariamente por uma palavra amiga, é porque perdemos Deus. Somos como um membro amputado, arrancado do organismo caloroso de vida, chamado de amor agape. Se estivéssemos com Deus, bem perto dele, uma torrente de amor jorraria de nós, mesmo em meio à pior miséria, “pois Deus é amor, e somente aquele que permanece no amor permanece em Deus, e Deus, nele” (1Jo 4.16). Se permanecemos em Deus, as pessoas devem sentir que um grande amor vive em nós. Estarmos tão distantes de Deus, essa é a enfermidade de que todos nós padecemos. Por isso são os doentes, nós doentes, que precisam do médico Jesus Cristo com tanta urgência (cf. K. Heim, Predigten).
Fonte: Mateus - Comentário Esperança
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