"E ouvireis de guerras e de rumores de guerras;..." Mateus 24:6
Hoje não cessam de culpar o ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair pelas suas ações em relação ao Iraque em 2003. Entretanto, o relatório Chilcot é apenas o topo do iceberg. Blair não foi o iniciador principal da campanha iraquiana.
O que interessa mais é que o relatório Chilcot não trouxe nada que não se soubesse. Não é segredo que quase todas as intervenções dos países ocidentais nas últimas duas décadas foram um erro sério. O relatório britânico afirmou que a guerra no Iraque não foi uma ação de último recurso, mas é possível que a guerra se possa tornar o último recurso? Será que isso corresponde aos declarados princípios pacíficos do direito internacional?
A ideia de intervenção para servir os objetivos de segurança de determinado país foi introduzida pelos filósofos da Idade Média. Santo Agostinho, Tomás de Aquino e mais tarde Hugo Grócio e outros elaboraram critérios segundo os quais as ações militares podiam ser consideradas justificadas. Assim surgiu a doutrina de Guerra Justa. Os seus princípios consistem em que a guerra pode ser iniciada somente em caso de: 1) ter uma causa justa (autodefesa, ajuda a um país-aliado em repelir a agressão de inimigo ou uma ideia mais controversa que surgiu mais tarde – a agressão das autoridades de um país contra a sua população), 2) legitimidade das autoridades que iniciam uma guerra, 3) boas intenções (a guerra não deve ser iniciada para responder aos interesses egoísticos dos líderes do país, mas para o bem de todos), 4) alta probabilidade de sucesso (não faz sentido iniciar uma guerra se o seu resultado é pouco previsível ou o país não tem bastante recursos para vencer), 5) guerra é um meio de último recurso (depois de todos os meios pacíficos estarem esgotados). São os princípios jus ad bellum (que definem quando é razoável e justo iniciar uma guerra). Há mais dois princípios que são os jus in bello (direito que define de que forma uma guerra é realizada) que indicam que, durante de uma guerra justa, as partes devem usar meios proporcionais à ameaça. Por exemplo, se o inimigo usa armas convencionais o país não tem direito de responder com armas nucleares. Outro princípio é que as partes devem descriminar entre combatentes e não combatentes e evitar vítimas entre os civis. A Carta da ONU parcialmente incorpora estes princípios.
Nas últimas décadas, a comunidade internacional abandona gradualmente a prática de operações de paz sob os auspícios da ONU e alguns países fazem a escolha a favor de intervenções internacionais, muitas vezes, sem uma autorização do principal órgão internacional – Conselho de Segurança da ONU. Há que dizer que por um lado, tais ações provocam uma situação de anarquia e caos nas relações internacionais porque minam o prestígio da ONU como árbitro principal. Um mundo que não tem limites sobre o que é permissível não consegue viver em paz. Do outro lado, a realidade de hoje é diferente da que existia na altura de elaboração da carta das Nações Unidas. Depois do fim da Guerra Fria o princípio de não intervenção nos assuntos do bloco inimigo desapareceu, muitas das operações de paz da ONU tornaram-se ineficientes, a ONU ainda não conseguiu as suas próprias Forças Armadas, surgiram novas ameaças globais que exigem resposta urgente (por exemplo, o terrorismo).
Tendo em conta todos estes aspetos, a comunidade internacional apresentou primeiramente o conceito de intervenção humanitária e depois o conceito de responsabilidade de proteger a população civil das ações agressivas do seu governo. Entretanto, ninguém fala de intervenções arbitrárias em casos de ameaça à segurança internacional. Tais operações foram realizadas no Afeganistão e no Iraque. As operações na Sérvia em 1999 e na Líbia em 2011 tiveram como causa principal a necessidade de proteger a população civil (no primeiro caso contra o regime de Slobodan Milosevic e no segundo – do governo de Muammar Kadhafi). Em quatro destas operações, três não tiveram autorização da única autoridade legítima – o Conselho de Segurança da ONU. O que é ainda mais importante é que a "causa justa" nos casos na Iugoslávia e Iraque não foi provada. O genocídio na Sérvia não tinha nenhumas provas documentais. As armas de destruição em massa no Iraque não foram encontradas. A agressão das forças de Kadhafi contra grupos oposicionistas foi um fato real, mas a intervenção foi iniciada demasiado cedo. A comunidade internacional não teve tempo para usar todos os meios pacíficos para resolver a situação sem o uso de força: os confrontos na Líbia iniciaram-se em 15 de fevereiro de 2011 e logo um mês depois, em 19 de março, os EUA e os seus aliados começaram a bombardear o território líbio.
Quanto aos resultados destas campanhas militares, na Sérvia a população civil sofreu grandes perdas. Segundo os dados oficiais do governo sérvio, em resultado dos bombardeamentos foram mortas mais de 2,5 mil pessoas, foram destruídas numerosas infraestruturas civis. As fotos das consequências falam mais que mil palavras.
No Iraque, a guerra tornou-se também uma tragédia humana. Segundo a base de dados Iraq Body Count, em 2003-2014 neste país do Oriente Médio morreram mais de 154 mil civis. Não são se trata somente de vítimas de ações militares, mas também das chamadas vítimas colaterais – pessoas que morreram em resultado das más condições de vida provocadas pela guerra. Do ponto de vista da segurança, a situação no Iraque se agravou a um nível sem precedentes – a ascensão do Daesh é a consequência principal do vácuo de poder que surgiu no país depois de destituição do regime de Hussein.
Na Líbia, a situação não é muito diferente. O relatório da organização Human Rights Watch detectou que as forças dos países ocidentais algumas vezes bombardearam instalações civis. A segurança no país foi prejudicada: o país foi dividido entre muitos grupos armados que operam em várias zonas do território líbio. O governo líbio ainda está muito fraco, está dividido e precisa de ajuda do exterior. Mesmo os próprios norte-americanos sofreram das suas ações: por exemplo, em setembro de 2012 foi atacado o consulado dos EUA em Benghazi. Em resultado do ataque foi morto o embaixador norte-americano na Líbia, Christopher Stevens, e mais três diplomatas do país. Muitos culpam Hillary Clinton do acontecido, ela era Secretária de Estado dos EUA naquela altura.
O resultado principal em todos estes três casos foi a eliminação física do líder do país. Milosevic morreu na prisão em 11 de março de 2006, sendo réu em um processo judicial. Saddam Hussein foi executado em 30 de dezembro do mesmo ano, depois de o tribunal iraquiano o ter condenado à morte. Muammar Kadhafi foi barbaramente assassinado pelos rebeldes líbios em 20 de outubro de 2011 na sua cidade natal de Sirte.
Além do objetivo de derrubar regimes pouco convenientes, estas intervenções armadas visavam satisfazer mais os interesses dos países interventores.
As tendências de desintegração na Iugoslávia coincidiram com a altura em que a OTAN devia determinar o seu próprio futuro. Com o colapso do bloco soviético a aliança perdeu, digamos, o seu sentido de vida. Decisões tomadas pelos países da OTAN nos anos de 1990 estabeleceram que a zona da sua responsabilidade abrangeria não somente o território dos seus países-membros, mas todo o mundo. A situação na Iugoslávia tornou-se um pretexto para passar das palavras às ações. A OTAN provou que pode ser implacável e não somente pode, mas também tem todos os recursos necessários para impor a sua visão sobre os outros.
O Iraque foi transformado em cobaia dos EUA na sua tentativa de testar o seu conceito de democratização forçada dos países do Oriente Médio e um aviso para países como a Líbia e Síria. Um outro objectivo não declarado foi mudar o espaço vizinho ao redor do seu aliado principal no Oriente Médio – Israel.
A Líbia serviu os interesses dos principais contribuintes da campanha militar. A França usou a operação como um instrumento para demonstrar que conseguiu integrar-se completamente na organização militar da OTAN depois do seu retorno em 2009. O Reino Unido tinha a oportunidade de provar que é o aliado mais leal aos EUA capaz de assumir o papel principal na operação. Os próprios EUA queriam aumentar o seu prestígio no mundo árabe, o que exigia fazer algo para resolver o conflito líbio.
Intencionalmente evitei falar da operação no Afeganistão porque é a única operação que parece ser mais ou menos justa. A operação é uma consequência da guerra contra terrorismo proclamada pelos EUA após ataques 9/11. O grupo radical Al-Qaeda foi reconhecido como culpado dos ataques e os EUA decidiram realizar intervir no Afeganistão onde, segundo as informações de sua inteligência, a influência dos terroristas era muito grande. A legitimidade da operação foi estabelecida já depois do início das ações militares por uma resolução do Conselho de Segurança da ONU. Quanto à chance de vitória, todos os especialistas ecoam a opinião que os EUA sobrestimaram as suas capacidades e provaram que não são capazes de travar uma guerra de guerrilha por muito tempo. Além disso, os EUA e a OTAN não conseguiram restaurar a economia e estabelecer um forte governo no país. A guerra no Afeganistão não era o último recurso. Há opinião de que a reação norte-americana aos ataques foi inadequada e não correspondia à envergadura da ameaça.
O resultado principal da operação foi a crescente popularidade dos EUA no mundo. Depois dos ataques, 136 países ofereceram ajuda militar aos EUA. Criando a coalizão contra o terrorismo, os EUA dividiram o mundo entre os que estão contra terrorismo e os que o apoiam. Se o país não tivesse integrado a coalizão poderia ser acusado de cumplicidade com os terroristas. Isso ajudou-os muito na realização do seu objetivo de assegurar os seus interesses no Oriente Médio e os seus arredores.
Qual é o resultado de todas essas ações agora? A resposta é evidente – uma guerra sem fim. No Iraque, as ações militares não cessam desde 2003. Primeiramente, foi levada a cabo uma luta contra Hussein, agora – contra o Daesh. Na Líbia, desde 1 de agosto, os EUA começaram mais uma vez os bombardeamentos contra grupos terroristas, operações cuja legitimidade também estão em dúvida. O Afeganistão não foi salvo de ameaça do terrorismo do Talibã e agora enfrenta mais um perigo – o Daesh. Para quê realizar intervenções se, no futuro, a situação não se altera ou agrava ainda mais e exige mais violência externa? Será que os políticos como Blair e Obama têm de pedir desculpas pelas suas ações do passado?
Mais uma vez a resposta é simples. A guerra alimenta as economias. A guerra permite testar novos equipamentos e armamentos e aperfeiçoar os sistemas de defesa. A guerra faz com que a situação saia de controle dos governos e comece a desenvolver-se em uma lógica de confrontação interna. É muito conveniente uma situação de caos e confrontos perpétuos. É possível apoiar quem se quiser e mudar a correlação de forças na região exclusivamente nos seus interesses.
A guerra sem fim já é a nossa realidade e agora a comunidade internacional deve decidir se quer que seja o nosso futuro. A vontade política tem uma grande importância. Se os conflitos de hoje na Síria, Iraque, Afeganistão vierem a ser resolvidos definitivamente, o mundo terá a oportunidade de viver em paz por algum tempo. O que deve ser feito é resolver a questão das Forças Armadas da ONU e a restauração do estatuto da ONU como o árbitro principal nas relações internacionais. Se a ONU tiver as suas Forças Armadas e a sua voz tiver grande peso na política mundial, poderá exercer funções da OTAN ou de outros blocos militares na resolução das crises. Infelizmente, a polêmica sobre a ONU não está no foco da agenda internacional e parece que o futuro luminoso não é o que nos espera.
Fonte: Sputnik.
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