Um dos civis iraquianos que se arriscou a fugir da batalha crescente por Fallujah só chegou até o rio Eufrates. Ele estava lá para todos verem na manhã de domingo: seu corpo, amarrado à lateral de um barco, balançava nas águas enlameadas perto de uma ponte em ruínas que separa Bagdá da violência na província de Anbar.
"Xeque, xeque, veja este homem! Ele se afogou", disse um menino, apontando, ao se aproximar da janela do caminhão que cruzava lentamente a ponte, transportando remédios. "Veja, veja o corpo dele."
Os milhares de civis que conseguiram fugir de Fallujah e seus arredores e chegar às áreas controladas pelo governo nos últimos dias enfrentaram viagens duras, muitas vezes à noite e sob o fogo de militantes do Estado Islâmico (EI), que tentavam usá-los como escudos humanos. Muitos cruzaram o largo rio Eufrates em barcos improvisados, e as autoridades locais disseram que mais de uma dúzia se afogou nos últimos dias, morrendo em seu próprio país do mesmo modo que milhares de sírios e iraquianos morreram no mar tentando chegar à Europa.
Os sobreviventes chegam aos campos de ajuda cansados, famintos, sedentos e feridos, e suas provações estão longe de terminar. Agora eles estão nas mãos de um governo sem recursos para cuidar deles.
"Eu arrisquei minha vida porque estava muito preocupado por meus filhos, e não havia quase nada em Fallujah, nem comida nem eletricidade, combustível, nada", disse uma mulher que chegou recentemente a um acampamento em Amiriyat Fallujah, cidade controlada pelo governo ao sul de Fallujah, e que disse chamar-se Umm Bariq.
Mas no campo, disse ela, faltam comida, remédios e água limpa. "Então estamos sofrendo aqui, em condições difíceis", afirmou a mulher. "Precisamos de ajuda."
Se as condições para os civis apanhados na batalha estão ruins, é provável que piorem muito. Pelo menos 50 mil civis continuam presos em Fallujah sob o regime do Estado Islâmico --talvez 20 mil crianças, segundo a ONU. Na semana passada, a preocupação era que eles fossem mortos no fogo cruzado quando as forças iraquianas e as milícias xiitas, suas aliadas, invadissem a cidade.
Agora, enquanto a luta parou nos arredores diante da feroz resistência do EI, um sítio durante semanas ou meses, no calor do verão, poderá levar à penúria em massa. Houve negociações frenéticas, através de intermediários, entre agências de ajuda internacional e autoridades do EI em Fallujah, tentando abrir corredores para a entrega de alimentos e remédios. O problema é agravado, segundo alguns profissionais de ajuda, pelo rígido controle do governo iraquiano no tráfego entre Bagdá e a província de Anbar, o que retardou a entrega de suprimentos humanitários aos acampamentos e à área de Fallujah.
As áreas controladas pelo governo no oeste da província de Anbar, uma região dominada por sunitas que é um território central para o EI, tornaram-se vastos campos de sofrimento humano. Cidades de barracas surgem por toda parte, oferecendo pouco mais que abrigo básico e um pouco de comida, água e remédios, mas não o suficiente. O calor é terrível, sempre acima de 38 ºC durante o dia, e a maioria das tendas não tem ventiladores nem eletricidade para movê-los.
Quando as forças iraquianas chegaram à cidade de Saqlawiya, ao norte de Fallujah, na semana passada, Hatem Shukur acenou uma bandeira branca para chamar sua atenção. Em uma entrevista, disse que ele e sua família tinham recebido água fria, melancia, maçãs e bananas, delícias depois de meses de sítio.
"Mas agora estamos enfrentando outro problema", disse Shukur, 58. "Você pode imaginar sua família vivendo aqui, neste calor?"
Ele indicou com o braço o espaço onde ele e sua família vivem, um pequeno quadrado de piso de cimento, uma armação metálica e folhas de plásticos como paredes. No chão, deitada em um cobertor, dormia sua neta de 8 meses, Rawan, com moscas zumbindo ao seu redor.
Socorristas manifestam frustração diante de sua incapacidade de suprir as necessidades básicas dos civis apanhados na guerra --não há sequer água potável suficiente nos acampamentos, disseram autoridades. Sempre surge esta pergunta: por que sempre há muito mais dinheiro para as operações militares do que para água e comida para os civis desalojados por elas?
"Simplesmente não tem sentido investir tanto em uma campanha militar para derrotar o EI e não oferecer apoio à sobrevivência dos iraquianos em seu momento de maior necessidade", disse Lise Grande, a principal autoridade humanitária da ONU no Iraque.
Grande, que enfatizou que a ONU não teve dificuldades com o governo iraquiano para organizar a entrega de ajuda em Anbar, disse que a iniciativa ainda enfrenta uma grande escassez de fundos dos doadores internacionais.
No início deste ano, a ONU disse que precisaria de pelo menos US$ 860 milhões (R$ 2,9 bilhões) para pagar por programas humanitários urgentes no Iraque. Mas até agora, a agência levantou apenas 30% dessa soma, aproximadamente US$ 260 milhões (cerca de R$ 900 milhões), e se prepara para fechar alguns programas vitais neste verão.
As milícias xiitas tiveram um papel de destaque na ofensiva para retomar Fallujah após quase três anos de domínio do EI. Mas por isso a batalha se desenrola em meio a preocupações persistentes de que a campanha possa intensificar as tensões sectárias que dilaceram o país.
Os combatentes extremistas sunitas do EI advertiram os civis de que as milícias xiitas os matariam em ataques vingativos, sempre que possível. A mídia noticiosa da Arábia Saudita e de outros países do golfo Pérsico emolduraram a batalha em termos sectários grosseiros, advertindo que as milícias do Irã estavam decididas a matar os sunitas.
Mas a maioria dos civis que fugiram das áreas ao redor de Fallujah disseram que estavam cansados da vida dura sob o EI e que foram bem tratados pelas milícias e os soldados iraquianos.
"Ficamos surpresos ao sermos tão bem tratados", afirmou um homem de cerca de 50 anos, que disse chamar-se Abu Muhammad, parado diante de sua tenda no campo no domingo. "O EI nos disse que os xiitas queriam vingança e nos matariam." Mas, em vez disso, lhes deram biscoitos e suco de laranja, segundo ele.
Fonte: The New York Times.
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