Uma reportagem publicada na edição impressa da revista ‘Veja’ neste final de semana despertou reações acaloradas. A reportagem mostrava, através de um levantamento criterioso, que mais de 5.000 servidores públicos do Executivo, do Legislativo e do Judiciário — todos na esfera apenas federal — receberam salários acima do teto constitucional, de R$ 33.763, no mês de setembro deste ano. ‘Veja’ chamou de “marajá” todo o servidor cujo salário fura o teto — seja por poucos reais, seja por vários milhares de reais. A lei determina que o teto salarial do funcionalismo público deve ser o salário de um ministro do Supremo Tribunal Federal. Ou seja: R$ 33.763. Qualquer centavo acima disso, seja a que pretexto for, é fura teto.
Houve reação de todos os poderes, porém a mais forte veio do Judiciário, sobretudo de juízes e procuradores. Em sua maioria, alegaram que só recebem além do teto de R$ 33.763 porque agregam ao salário alguns benefícios e indenizações. É verdade. Muitos funcionários, com base em normas, resoluções e decisões de todo o tipo, embolsam todo o mês auxílios e complementos diversos que, somados ao salário-base, acabam furando o teto. Examinada sob esse ângulo, a questão dos supersalários é apenas uma questão de normas, resoluções e decisões de todo o tipo. Outro modo de analisar o assunto, e foi esse o modo adotado por ‘Veja’, está no artigo 37, parágrafo XI da Constituição, no qual se lê que o vencimento de nenhum funcionário público, seja juiz ou procurador, seja em função de norma ou resolução, pode ultrapassar o teto “incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza”. Ou seja: o artigo 37 diz que mesmo com benefícios o teto precisa ser respeitado. Com base nisso, ‘Veja’ pesquisou quem seriam os fura-teto, quem seriam os marajás do serviço público que recebem além do que diz a Constituição.
Há muitos casos em que o artigo 37 atua para manter os vencimentos no teto. O funcionário Marco Antônio Pais dos Reys, por exemplo, que trabalha como analista legislativo do Senado, deveria receber em setembro — mês em análise por ‘Veja’ — um salário de R$ 39.503,86 porque, na composição de seu remuneração, entram R$ 25.598,28 de “estrutura remuneratória básica” e outros R$ 13.905,58 de “vantagens pessoais”. Mas, como os penduricalhos todos furam o teto, o servidor recebe um abate-teto, ou seja, um corte de todo o valor acima do teto. No caso, R$ 5.740,86. Com o corte, Reys recebeu em setembro exatamente dentro do teto, tal como determina a Constituição. A lista dos marajás é composta de nomes que, mesmo quando sofrem algum tipo de abatimento, deixam o teto a ver navios.
Isso não significa que os servidores estejam cometendo uma ilegalidade. A enorme maioria fura o teto porque está respaldado numa norma, numa decisão judicial, ou algo de natureza semelhante, que lhe garante receber mais do que o teto. Há vezes em que as decisões que permitem furar o teto são pura malandragem, como a permissão para que servidores públicos ganhem um “extra” por participar de conselhos administrativos de estatais. Desde 1996, esse “extra” é questionado através de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 1.485) no Supremo Tribunal Federal. Até hoje, não há um julgamento definitivo e, a bordo da indefinição, muitos vão embolsando o “extra” acima do teto.
Outras vezes há decisões que, de fato, podem fazer sentido, como é o caso do abono de permanência. Ele permite que o servidor, mesmo depois de completar o tempo mínimo para requerer aposentadoria, continue trabalhando em troca de um adicional. Esse mecanismo beneficia não apenas o servidor que prefere continuar na ativa como acarreta economia para o Estado, já que o funcionário deixa de receber a aposentadoria e o governo não precisa contratar ninguém para o seu lugar. Ainda assim, é um caso de fura-teto.
Na reportagem de ‘Veja’, aparecem exemplos de servidores com altos salários de todos os poderes. No Executivo, por exemplo, o ministro do Planejamento, Dyogo Henrique de Oliveira, aparece com vencimentos de R$ 81.700 em setembro. No Judiciário, a desembargadora do Tribunal Regional Federal de São Paulo, Therezinha Cazerta, recebeu R$ 83.000 em setembro, seguida muito de perto pela juíza federal Vera Lúcia Feil Ponciano, com R$ 82.500, mas ninguém chegou perto do recorde nacional encontrado por ‘Veja': o juiz federal Carlos D’Ávila Teixeira, cujo salário em setembro passou de R$ 198.000s. No Ministério Público, o procurador Daniel César Azeredo Avelino recebeu R$ 97.000. No Legislativo, talvez o mais transparente dos poderes no que se refere à questão salarial, o ministro José Múcio Monteiro Filho, do Tribunal de Contas da União, recebeu R$ 51.000, mas uma analista do Senado, Angela Cristina Viana, superou-o com folga: embolsou R$ 67.200.
São todos exemplos de fura-teto, mas isso não significa que recebam, todos os meses, esses valores exatos. Num determinado mês, pode haver algum desconto. Em outro, pode haver algum acréscimo, de tal modo que os valores que aparecem no contracheque sofrem variações. Para não cometer a injustiça de noticiar o caso de um servidor que recebeu acima do teto em setembro — e apenas em setembro — em função de algum acréscimo temporário, a reportagem de ‘Veja’ inicialmente identificou os fura-teto e, em seguida, conferiu se seus salários mantiveram-se acima do teto nos dois meses anteriores. Ou seja: julho e agosto. E só publicou os casos em que os salários furavam o teto em todos os meses pesquisados.
Tome-se o caso da magistrada Vera Ponciano, que recebeu R$ 82.500 em setembro. Seu nome só aparece na lista dos fura-teto porque, em julho, ela recebeu R$ 35.716 e em agosto recebeu R$ 42.760. Ou seja: furou o teto em ambos os meses, além de setembro. Mesmo nos salários que recebeu nos meses seguintes, a magistrada também furou o teto. Recebeu R$ 35.800 reais em outubro e R$ 67.000 em novembro. Resumindo: em cinco meses examinados por ‘Veja’ seu salário teve variações acentuadas, devido a adiantamentos e descontos, mas nunca deixou de furar o teto. A revista aplicou o mesmo critério para todos os nomes mencionados.
No serviço público, em qualquer dos três poderes, as variações salariais podem ser enormes. O ministro José Múcio, do Tribunal de Contas da União, afirma que foi incluído indevidamente na lista porque recebeu em setembro o seu abono-férias, o que elevou seu pagamento de setembro para mais de R$ 50.000. O ministro tem razão. Mas continua sendo um fura-teto. Excluindo-se o abono, seu salário cai para R$ 40.200, quantia que recebeu em julho, agosto e, excluído o abono, setembro. No seu caso, o excesso nem é tão gritante, mas beira os R$ 7.000. O assunto — supersalários no serviço público é um vespeiro. Porque mexe com privilégios, na visão de uns, e com direitos adquiridos, na visão de outros. Por isso, costuma gerar reações indignadas, tanto dos que são apontados como marajás, quanto dos leitores, revoltados com a existência de servidores fura-teto.
‘Veja’ recebeu nota de quatro entidades fazendo contestações pontuais à reportagem. O leitor pode conferir o conteúdo das notas e, também, os comentários que a revista julgou relevantes:
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