A cura do leproso, Mt 8.1-4
(Mc 1.40-45; Lc 5.12-14)
Ora, descendo ele do monte, grandes multidões o seguiram. E eis que um leproso, tendo-se aproximado, adorou-o, dizendo: Senhor, se quiseres, podes purificar-me. E Jesus, estendendo a mão, tocou-lhe, dizendo: Quero, fica limpo! E imediatamente ele ficou limpo da sua lepra. Disse-lhe, então, Jesus: Olha, não o digas a ninguém, mas vai mostrar-te ao sacerdote e fazer a oferta que Moisés ordenou, para servir de testemunho ao povo.
Observações preliminares
Lucas, o médico, descreve em Lc 5.12 esse doente como um homem que estava “cheio de lepra” (pleres lepras), que se encontrava no último estágio da doença. Como médico, Lucas sabia desse caso totalmente sem esperança, marcado pela morte iminente. – Apesar de Jesus ter curado muitos leprosos, apenas dois são mencionados explicitamente (aqui e em Lc 17).
Em Israel os leprosos eram assunto da mais extrema repulsa. A lepra era a pior enfermidade em três sentidos:
1. No aspecto físico: Pústulas esbranquiçadas corroíam a carne, um membro após outro era atingido e, por fim, até os ossos eram carcomidos. Febre alta com insônia e pesadelos atormentava terrivelmente o enfermo. Era certo que a doença levava à morte. Por causa dessa total falta de esperança, o doente era igual a um cadáver vivo. Os mestres da lei judaicos contavam os leprosos entre os mortos (são quatro os equiparados a um morto: o pobre, o leproso, o cego e o homem sem filhos; St-B, vol. I, p. 175). Se porventura, por uma causa qualquer, acontecia uma cura, essa equivalia ao reavivamento de um morto.
2. No aspecto social: Pela natureza altamente contagiante da doença, o enfermo era isolado de sua família e excluído do convívio com as pessoas, ficando limitado apenas à companhia de outros infectados, igualmente infelizes. Via de regra os leprosos viviam em grupos, a certa distância de locais habitados (2Rs 7.3; Lc 17.12). As pessoas colocavam comida para eles em locais combinados. Quando se aproximavam, todos fugiam apavorados. Essa mais terrível de todas as enfermidades era chamada de “tirano de todas as doenças”. Os leprosos andavam sem cobrir a cabeça, ocultando o queixo. Deviam rasgar suas vestes e tinham a obrigação de se anunciar quando alguém se aproximava, exclamando: “Impuro, impuro!” Ou seja, estou pesteado, envenenado, contagioso, sou um excluído, fique longe! – Não bastava que o doente tivesse lepra, ainda tinha de anunciar em voz alta sua condição lastimável (cf. Lv 13.45s). Em gratidão pelo lastimoso aviso, costumava-se enviar comida para os leprosos até seu lugar solitário. Contudo, quando o leproso se aproximava de um povoado humano qualquer, era apedrejado sem escrúpulos.
3. No aspecto religioso: A lepra tornava a pessoa impura no sentido levítico. A impureza do leproso superava qualquer tipo de impureza perante a lei. Pois não apenas tornava impuro tudo o que tocasse, mas a mera presença dele já bastava para contaminar tudo naquele local, mesmo sem contato físico. “Quando um leproso entra numa casa, no mesmo instante em que entra nela todos os utensílios dentro dela ficam impuros, até a viga mais alta.” Como sinal de sua impureza, “ele deve”, assim exige a lei, “rasgar suas roupas, deixar crescer o cabelo sem cuidados e ocultar sua barba…” Por causa dessa impureza toda especial, a lepra também era um motivo pelo qual a esposa podia divorciar-se. – O mais terrível era que a lepra se apresentava como um castigo direto de Deus, mais precisamente como castigo por difamação (Sl 101.5), orgulho (2Rs 5.1; 2Cr 26.16,19), derramamento de sangue (2Sm 3.29), perjúrio (2Rs 5.23,27), lascívia (Gn 12.17), roubo ( Lv 14.36) etc. Essa era a situação terrível para o leproso, que ele tinha de considerar -se como alguém amaldiçoado por Deus, deserdado por Deus. Enquanto a doença durava, persistia sobre ele a sentença condenatória. Como na maioria dos casos a doença acabava na morte horrível, uma pessoa assim infeliz morria nas trevas do desespero total, repelido eternamente por Deus, destinado a ir ao encontro da condenação e do inferno eternos. Ao tormento temporal seguia-se o tormento eterno.
1 Ora, descendo ele do monte, grandes multidões o seguiram.
Jesus desce do monte em que proferiu o sermão, nas proximidades de Cafarnaum, na região montanhosa da Galiléia. Não desce sozinho, mas rodeado de multidões que, ainda que tomadas de espanto, não o abandonam. Jesus entra em Cafarnaum.
2-4 E eis que um leproso, tendo-se aproximado, adorou-o, dizendo: Senhor, se quiseres, podes purificar-me. E Jesus, estendendo a mão, tocou-lhe (abraçou-o), dizendo: Quero, fica limpo! E imediatamente ele ficou limpo da sua lepra. Disse-lhe, então, Jesus: Olha, não o digas a ninguém, mas vai mostrar-te ao sacerdote e fazer a oferta que Moisés ordenou, para servir de testemunho ao povo.
A palavrinha “eis” (grego idou) denota o aspecto inaudito, surpreendente e súbito, a saber, que um leproso tinha tido coragem, contra todas as prescrições legais – sem medo de ser apedrejado – (sem gritar: “Impuro, infectado, fiquem longe!”), para arrastar-se ao centro da cidade no intuito de conseguir de qualquer forma, custasse o que custasse, um encontro com Jesus. A fé rompe através de aço e pedra. Todos os três evangelistas relatam esse acontecimento. Quando a multidão viu aquela figura lastimável, fugiu cheia de pavor e temor. Também é muito provável que os discípulos se afastaram rapidamente.
Somente Jesus, aquele que sempre age de modo totalmente diferente, fica parado. Assim ficam frente a frente Jesus e o leproso, numa rua vazia, sem gente. Só de longe a multidão observa esse quadro incomum.
O homem consagrado à morte lança-se aos pés de Jesus e clama: Senhor, se quiseres, podes purificar-me. De certo ouvira sobre Jesus, que ajuda e cura. Quando afirma: “Podes purificar-me” e não: “Podes curar-me” – está apontando para a angústia interior, a terrível angústia de ser amaldiçoado por Deus.
Mas também em outro aspecto transparece algo essencial nessa palavra do leproso: Senhor, se quiseres, podes purificar-me. O pedido do leproso ilustra a natureza da fé autêntica. Fé ativa tem dois lados, um lado ativo e outro passivo. O lado ativo mostra-se como certeza de fé inabalável. A fé sabe que Deus atende orações. O lado passivo revela-se no fato de que a fé não determina a partir de si o modo do atendimento, não agarra com violência a ajuda do Senhor, como se tivesse um direito ao socorro de Jesus, como se tivesse poderes de dispor sobre o poder do Senhor. Não, fé autêntica deixa o modo e a forma de atendimento totalmente nas mãos do Senhor (cf. o exposto sobre 6.5-13 e 7.7-11).
O pagão visa com sua oração tornar os deuses obedientes a ele. Por isso ele reforça sua oração com sacrifícios, presentes, autoflagelações, jejuns. Seu ídolo precisa ser convencido, precisa reverter seu ânimo em sentido favorável, precisa ser subornado.
O cristão, em contraposição, diz na sua oração: “Senhor, se queres…” Não a vontade própria, mas unicamente a vontade e o desejo de Deus devem prevalecer. Isso é fé de discípulo, fé autêntica. O cristão sabe que ele pode confiar que Deus fará qualquer tipo de ajuda, mas não lhe prescreverá nenhuma.
O excluído apresenta essa fé autêntica. “Se queres, podes purificar-me.” E o que faz o Senhor? Ele estende sua mão ao infeliz, agarra-o firmemente, sim, abraça-o, envolve-o e aperta-o, o impuro, contra o seu peito, seu coração de Salvador.
O abraço ao pobre leproso também pode ser interpretado simbolicamente. Ao morrer na cruz sobre o Gólgota, o Senhor “abraçou a humanidade impura da lepra do pecado e tomou sobre si o pecado do mundo para levá-lo embora” (cf. Is 53; Jo 1.29; 2Co 5.21).
Jesus diz: Quero. Uma palavra de autoridade, uma palavra que contém poder criativo divino. No mesmo instante aquele que antes parecia um cadáver putrefato estava diante do Senhor puro e saudável. O excluído estava novamente aceito na comunhão humana. Foi esse o milagre da cura.
Como Jesus havia dito no sermão do Monte: “Não pensem que vim para dissolver a lei, mas para cumpri-la” (cf. Mt 5.17), ele envia o curado aos sacerdotes: Cuidado, não o digas a ninguém, mas vai mostrar-te ao sacerdote e fazer a oferta que Moisés ordenou, para servir de testemunho para eles. A proibição de Jesus de falar a alguém sobre a cura quer evidenciar que Jesus estava empenhado principalmente em cumprir a prescrição legal (sobre a cura de leprosos). Jesus temia que o curado pudesse imaginar (após a lepra ter sido afastada dele de modo tão extraordinário) que também estivesse livre da impureza prevista em lei e que não mais precisasse do atestado de purificação prescrito pela lei (cf. Lv 14.2s). Jesus não quer isso. A lei deve ser obedecida com rigor. Desse modo as palavras finais “de testemunho para eles” adquirem um sentido bem simples, a saber, de testemunho para os sacerdotes, e não para o povo. Esse testemunho para os sacerdotes é a prova de que Jesus observa estritamente a lei mosaica que requer um “sacrifício” do leproso.
Jesus igualmente evitou o louvor da multidão, evitou criar uma fé falsa, uma fé que se agarra somente em sinais e milagres, motivo pelo qual não é fé verdadeira e autêntica. É por isso que o Senhor proibiu ao curado que “falasse adiante”!
Que situação peculiar! Os adversários precisam atestar oficialmente o milagre (não há como interpretar e distorcê-lo), mas ao próprio Senhor não reconhecem, ou melhor, não o querem admitir como tal! A ninguém é mais difícil convencer da verdade que aos chamados representantes oficiais da verdade.
O envio aos sacerdotes, porém, tinha ainda outro sentido, mais profundo e em duas dimensões:
• Por meio dessa ação Jesus assume uma posição clara diante dos sacerdotes;
Jesus deixa à categoria sacerdotal suas funções oficiais. Não se insurge como um revolucionário anti-sacerdotal. Dessa maneira ele abre para si possibilidades de ação, sem que os sacerdotes possam cerceá-lo em termos legais. Que ele cure leprosos. Enquanto os enviar aos sacerdotes e impuser aos curados até a obrigação de realizar a oferta, legalmente eles não poderão agir contra ele.
• Jesus exige dos sacerdotes uma posição clara diante da sua pessoa.
Contudo, Jesus também quer que eles ouçam: “Está aí quem cura os leprosos. O Messias chegou!” Para que seja chamada a atenção deles de que o reino de Deus está bem no meio deles.
Conforme o relato de Lucas (Lc 5.16), Jesus se retira, após a cura do leproso, para um lugar solitário, a fim de orar. Jesus sempre de novo tinha a preocupação de proteger sua atividade de qualquer desvirtuamento espiritual, dedicando boa parte de seu tempo à oração. Por desse meio ele tentava combater simultaneamente a agitação entre o povo, provocada pela sua mensagem e sobretudo pelos seus milagres. A oração constituía o contrapeso que ele utilizava contra todos os perigos que continuamente ameaçavam sua obra de dentro ou de fora. A cena de Jesus orando conecta-se tanto ao acontecimento anterior quanto ao seguinte. Descobrimos aqui um dessas pausas de descanso que são especialmente características de Lucas (cf. comentário a Lc 4.42; 6.12).
Em toda a incomparável agitação e pressão do trabalho, Jesus continuou sendo o grandioso e singular homem de oração. Quase que forçosamente consegue espaço para orar. Abrevia o sono, separa-se do corre-corre das pessoas, da comunhão dos seus discípulos, e busca a solidão, busca seu Deus e Pai no silêncio da noite.
Fonte: Mateus - Comentário Esperança
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