Não são nem 6 horas da manhã quando Mphatsoenyane Lelia, envolta em sua manta basotho de lã, deixa seu vilarejo para caminhar até sua roça, acompanhada de seu cavalo que ela conduz pelo pescoço. Um outro camponês, do morro ao lado, a chama e pergunta gritando: "Como está seu milho?". Ela responde: "Tão magro quanto o seu, acho..."
Em seu terreno de algumas centenas de metros quadrados, os pés de milho não passam de um metro de altura, no melhor dos casos. "Nesta época do ano, já estaríamos começando a comer algumas espigas, mas este ano não deu nada, estamos perdidos", lamenta esse habitante de Sephareng, no centro do Lesoto, perto da barragem de Katse.
Na África austral, o cereal, alimento de base da população, é semeado a partir de agosto para ser depois colhido em maio e junho. Mas dessa vez nada se passou como de costume. "As primeiras chuvas de verão chegaram com quatro meses de atraso, no final de janeiro", conta, ainda espantado e inconformado esse pai de três filhos. "As duas últimas colheitas já foram ruins, não tenho reservas para passar o inverno que está chegando, que vou fazer?"
No vilarejo, parte do gado já morreu de fome e de sede, e os animais que sobreviveram quase não têm gordura para enfrentar a queda de temperatura esperada a mais de 2.000 metros de altitude.
Nesse pequeno país montanhoso, cercado pela África do Sul, os mais velhos se lembram da "terrível" seca de 1972. "E mesmo assim foi menos grave", afirma um deles.
O fenômeno climático El Niño, um dos mais potentes das últimas décadas, está atingindo duramente a África austral. Na parte sul do continente, 14 milhões de pessoas poderão sofrer com a escassez de alimentos em 2016, segundo a ONU.
Assim como o Zimbábue e várias províncias sul-africanas, o Lesoto declarou estado de desastre natural. Nenhum dos dez distritos do país foi poupado, e um terço dos 2 milhões de lesotianos não têm o suficiente para comer. O número provavelmente aumentará nos próximos meses, uma vez que 80% dos habitantes vivem da agricultura de subsistência.
Gastroenterites e diarreia
Na escola primária de Kholotso, perto de Sephareng, a água da torneira, proveniente de uma fonte da montanha, voltou a correr. Os 400 alunos de uniforme azul ficaram sem água durante três meses. Na hora do café da manhã e do almoço, eles fazem fila, com tigelas de plástico na mão, para receber o mingau de milho com ervilhas, uma ração dupla diária fornecida pelo Programa Alimentar Mundial (PAM). Carne, nem pensar, com seu preço proibitivo.
A fome nas casas já está sendo sentida. "Estamos na sexta-feira, os alunos vão chorar daqui a pouco quando precisarem sair da escola", conta um dos professores, Bohlokoa Moaloso. De manhã, a maior parte deles chega de barriga vazia, então imagine na segunda-feira ou na volta das férias..."
Ao norte, na clínica de Mahobong, Ntsie Matlanyane não esconde sua apreensão. "Com os cortes de água, o número de gastroenterites e diarreias dobrou. Estou constatando sobretudo um aumento na desnutrição", explica o oficial, depois de examinar uma mãe de 23 anos que pesava 47,5 kg.
A grande pobreza do país torna ainda mais devastadores os efeitos da seca sobre uma população já vulnerável, que tem 23% dos habitantes também doentes de Aids, a terceira maior incidência do mundo. "No entanto, eles precisam de qualquer jeito tomar seus antirretrovirais junto com comida", lembra o médico, "senão o medicamento os enfraquece ainda mais". Um de seus pacientes soropositivos, Mokhomometsing, aquiesce com a cabeça, enquanto escolhe em sua casa pêssegos do tamanho de lichias. "Não parei de rezar para que viesse a água, minha horta não dava nada, passei a comer só duas ou até uma vez por dia", conta o homem de 62 anos.
A chuva acabou caindo, verdejando o país. Mary Njoroge alertou contra o efeito enganoso dessa "seca verde". "As fontes de água dos vilarejos demorarão para voltar ao seu nível normal, sendo que o inverno e a estação seca chegarão em junho", afirma a oficial do PAM, na capital Maseur. "O mais preocupante é que os pequenos camponeses terão de esperar até a próxima colheita, daqui a mais de um ano, enquanto o preço dos alimentos está aumentando muito devido à escassez."
O primeiro-ministro lançou um apelo aos doadores estrangeiros para financiar um plano de emergência de 584 milhões de lotis (R$ 152 milhões), uma vez que seu país só pode pagar um quarto da soma. "Esperamos que alguns bons samaritanos venham nos socorrer, mas até o momento não tem havido muita procura", reconhece Haretsebe Mahosi, diretor da agência governamental de gestão de catástrofes.
O representante se defende das críticas sobre a demora da reação das autoridades. "Eu tinha entre 30 e 40 caminhões para distribuir água em todo o país, sendo que precisaria de uns 2.000. Pensei em alugar helicópteros, mas era caro demais para nossas finanças", ele afirma. "Então, é verdade, as cidades foram privilegiadas em detrimento dos vilarejos."
Nos pequenos vilarejos vizinhos à barragem de Katse, os habitantes estão inconformados, mas por um outro motivo. "A água está bem ali embaixo, diante dos meus olhos, mas ela é proibida para nós", revela Mohlakoana Molise, em frente a seu rondavel, uma casinha redonda de pedras e teto de sapé. "Deveríamos poder bombeá-la, levá-la até nossas casas para beber, irrigar nossas plantações e evitar o que acaba de acontecer."
Inaugurada em 1996, a barragem de Katse foi fruto de um acordo assinado dez anos antes entre a África do Sul e o Lesoto, apelidado desde então de "caixa d'água sul-africana". Financiada pelo vizinho, a monumental construção, com 185 metros de altura, permite o abastecimento de parte do país, incluindo a megalópole Johannesburgo-Pretória. Graças aos abundantes recursos do "reino dos céus", uma outra barragem foi erguida desde então, e há uma terceira sendo construída. No final de 2015, a África do Sul pediu ao Lesoto que abrisse mais as comportas para que a potência regional pudesse enfrentar melhor a seca.
"Fontes não confiáveis"
"Para nos convencer da legitimidade desse projeto de barragem, disseram na época que isso ia melhorar nossa vida aqui. É bem irônico constatar que hoje continuamos lutando para suprir nossas necessidades de água", observa Remaketse Leisa, que participou das negociações com as autoridades.
Em duas décadas, somente metade dos vilarejos perto da obra de arte foram ligados à rede de água, com uma torneira para seis ou sete casas. "A água não vem da barragem, mas de fontes nas montanhas, que não são confiáveis, como mostra a atual seca", lembra o ativista.
Lekheto Rakuoane, deputado da região e atual ministro das Relações Exteriores, reconhece que houve um "fracasso" na questão. "Mas se a África do Sul precisa de nossa água, também precisamos de seus royalties que financiam mais de 6% de nosso orçamento", ele diz. A margem de negociação do Lesoto, contudo, continua limitada em razão do peso político e econômico considerável de seu vizinho.
Mas junto com outros financiadores internacionais, este financiou a barragem doméstica de Metolong, inaugurada em novembro de 2015, que alimenta com água potável a região de Maseru, no oeste do país. Descontentes por não terem sido ligados à rede, moradores de vilarejos situados perto da barragem forçaram a abertura de uma comporta. Depois de condenarem a ação como "atos de vandalismo", as autoridades do Lesoto por fim aceitaram conectar os vilarejos rebeldes.
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Fonte: Le Monde.
Fonte: Le Monde.
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