A crise é evidente desde o início do ano, com a execução do xeque saudita Nimr al-Nimr seguida do saque e do incêndio da embaixada saudita em Teerã. Na época, o governo libanês, fruto de uma sutil mistura entre aliados do padrinho saudita (a Corrente do Futuro, dominante entre os sunitas) e do regime iraniano (o Hezbollah de Hassan Nasrallah, protetor dos xiitas), se absteve de emitir qualquer condenação, enfurecendo Riad.
Mas ela veio com a decisão de Riad de suspender o financiamento do mega-contrato de US$ 3 bilhões em equipamentos do Exército libanês, e de fazer um apelo para que seus cidadãos não fossem mais ao Líbano.
Na semana passada, a Arábia Saudita conseguiu com que o Conselho de Cooperação do Golfo aprovasse uma resolução que classifica o Hezbollah como uma entidade "terrorista". Outras medidas sauditas, mais radicais, poderão ser adotadas, como a suspensão dos investimentos no Líbano, a retirada dos fundos do reino de seus bancos e a expulsão de membros da grande diáspora libanesa presente nas monarquias do Golfo.
Tutela síria
Então o frágil e difícil equilibrio que prevalecia entre os chamados campos do "14 de Março" e do "8 de Março" foi rompido. Tudo começou há exatamente 11 anos, quando o Líbano estava em plena "revolução do cedro".
Rafic Hariri, ex-premiê, líder do Partido do Futuro e da comunidade sunita, acabava de ser assassinado em um atentado a bomba em Beirute. Ele havia desafiado a tutela síria sobre o país, que considerava cada vez mais penosa e inútil, uma vez que as forças israelenses partiram do sul. Um mês após sua morte, no dia 14 de março de 2005, uma gigantesca manifestação, a maior da história do país, reuniu um milhão de libaneses que exigiam "a verdade" sobre a morte de Hariri, mas também a "independência" da tutela síria.
Uma semana antes, pressentindo a onda que iria colocar um fim à presença militar síria no Líbano, os partidários do Hezbollah também saíram às ruas, no dia 8 de março. Foi assim que se formaram os dois principais campos que vêm dominando a política libanesa há mais de uma década.
De um lado, o "14 de Março", que reúne a grande maioria dos sunitas, levados pela Corrente do Futuro (dirigida por Saad Hariri, filho mais velho de Rafic), aliado a parte dos cristãos (as Forças Libanesas de Samir Geagea e os herdeiros da família Gemayel) e dos drusos (os partidários de Walid Joumblatt). Do outro, o "8 de Março", onde estão quase todos os xiitas (sob a liderança do Hezbollah pró-iraniano e do movimento Amal pró-sírio), dissidentes drusos e a outra metade dos cristãos (afiliados da Corrente Patriótica Livre de Michel Aoun e do partido pró-sírio Marada da dinastia Frangié).
Como sempre acontece no Líbano, cada um desses lados se apoiou em poderosos aliados externos: a França e a Arábia Saudita no caso do "14 de Março", e o Irã e a Síria no caso do "8 de Março". O "14 de Março" infalivelmente o vencia nas eleições, e o "8 de Março", com o apoio da força militar e da organização impecável do Hezbollah, infalivelmente retomava o terreno perdido nas urnas para impor suas "linhas vermelhas", sobretudo o fato de que o Hezbolllah continuaria sendo um Estado dentro do Estado dispondo de suas armas.
Os atos violentos de uns e a "combinação" permanente necessária para evitar abusos e ingerências estrangeiras de outros não favoreceram o surgimento de um Estado digno desse nome, como prova a crise do lixo que começou no verão de 2015 e que faz do Líbano o país mais sofisticado do Oriente Médio, mas incapaz de lidar com seu lixo. No entanto, bem ou mal o Líbano andava.
A guerra na Síria acabou desequilibrando tudo. A entrada de mais de um milhão de refugiados afundou a economia, e acima de tudo o envolvimento crescente do Hezbollah na repressão e na guerra a favor do regime de Bashar al-Assad atiçou as tensões religiosas locais.
Diante do rolo compressor sem culpa nem escrúpulos do "8 de Março" que, entre outras coisas, entravou a eleição de qualquer outro presidente que não fosse seu aliado cristão Michel Aoun desde 2014, o campo do "14 de Março" se rompeu.
Boa parte dos cristãos, assustados com as ameaças que pairavam sobre seus correligionários da Síria, deixaram de apoiar a revolução anti-Bashar al-Assad. Os drusos, com exceção de Walid Joumblatt, foram atraídos pelo discurso de "proteção das minorias" mantido por Damasco, ainda que fosse de fachada. E os sunitas hesitavam entre a moderação, encarnada por Saad Hariri, e uma atitude mais ofensiva, encarnada entre outros pelo xeque fundamentalista Al-Assir, hoje na cadeia.
A Arábia Saudita, irritada por ter de recuar em todas as frentes regionais diante do Irã e de seus aliados, decidiu pressionar Saad Hariri, intimando-o, indiretamente, a abandonar sua política de concessões com o Hezbollah. Essa é uma das explicações para as dificuldades financeiras que vêm sendo atravessadas neste momento pela gigante da construção civil de propriedade da família Hariri no reino saudita, a Saudi Oger.
Riad acredita ter pago para o Líbano dinheiro demais, para um retorno político insuficiente. Mas a nova intransigência saudita, da qual a França tem sido uma vítima colateral, pode acabar destruindo o que resta do campo do "14 de Março" e vencendo Saad Hariri. O que não seria uma boa notícia em um mundo sunita, onde a voz da moderação e da conciliação tem sido cada vez menos ouvida.
Leia também:Últimas Notícias. Com
Fonte: Le Monde.
Nenhum comentário:
Postar um comentário