13 de março de 2016

10: O sermão da montanha Mt 5 1-48

A CARTA MAGNA DO REINO DOS CÉUS
O SERMÃO DO MONTE
Mateus 5
1. Introdução, 5.1,2
(Lc 6.17,20)

1 Vendo Jesus as multidões, subiu ao monte, e, como se assentasse, aproximaram-se os seus discípulos; e ele passou a ensiná-los, dizendo:
Diante da pergunta a quem se dirige o sermão do Monte, respondemos que se dirige aos discípulos. São eles os interpelados. Por isso o Senhor, de acordo com Lucas (6.20), dirige “seus olhos” para eles e diz: “Felizes são vocês”! E Mateus diz: “Aproximaram-se dele os seus discípulos”. Entretanto, como Jesus gostaria que também as multidões ouvissem o que ele diz, ele abre a sua boca, o que significa que falou em voz alta. Todos eles devem saber o que Jesus diz àqueles que são seus discípulos e espera deles. Quanto às multidões, o final do sermão do Monte diz: “Estavam assustadas da sua doutrina, porque ele as ensinava como quem tem autoridade e não como seus escribas”. Os ouvintes do sermão do Monte, portanto, são dois grupos: os discípulos e o povo.
Porém o ensino dirige-se aos discípulos. Por isso o sermão do Monte é doutrina para os seguidores. Expõe diante dos olhos de todos os discípulos, e por extensão também diante da comunidade de Jesus na terra, os princípios pelos quais precisa guiar-se a nova vida de fé. – Por ser doutrina para os discípulos, é injustificada qualquer generalização das exigências do discurso do monte para além do círculo dos seguidores. O não-cristão estaria sobrecarregado. Mas não somente ele. O próprio cristão que está no discipulado não pode cumprir a partir de si as exigências de Jesus. Com a constatação de que somos totalmente incapazes de realizar o que o Senhor requer, avançamos para o verdadeiro ponto central da nova vida. Todas as religiões do mundo esforçam-se por estabelecer normas cujo cumprimento permanece nas esferas do humanamente alcançável. Jesus, e com ele o NT, exigem algo humanamente impossível. Por que o Senhor faz isso? Para que fique revelado que, a partir de nós próprios, não somos nem podemos nada. Por essa razão o sermão do Monte não consiste apenas de ordens e exigências, mas simultaneamente ele doa e presenteia muito mais. Oferece-se, àquele que de si não é nem consegue nada, forças do mundo vindouro.

As bem-aventuranças, 5.3-12 (Lc 6.20-26)

3 Bem-aventurados o humildes de espírito, porque deles é o reino dos céus!
É possível traduzir bem-aventurados com “felizes” ou “extremamente felizes”. Também podemos dizer “muito benditos”, sim, dignos de inveja são aqueles que…
Quem são, pois, os que são enaltecidos como tão felizes? São os ricos? São os fariseus?… Não, são os pobres!
Geralmente se traduz: “os pobres de (ou em) espírito”. Pensamos que tal versão não expressa inteiramente o que está sendo dito. A locução “pobre de espírito” está em contradição com o restante do NT, em que não são enaltecidos os pobres de espírito, e sim os que são ricos de espírito, ricos em Deus. Sim, o NT todo pressiona para que sejamos ricos em Deus, cheios do Espírito Santo. Assim seremos bem-aventurados no Senhor.
Considerando que no grego a forma dativa em que se encontra a palavra espírito também pode ter um significado causativo (cf. Rademacher e BI-D, Gramática no NT), podemos traduzir: Bem-aventurados aqueles que são pobres, tornaram-se pobres por meio do agir do Espírito Santo! Os que pelo Espírito Santo deixaram-se ficar pobres em si próprios, tão pobres que estão com o coração completamente arrasado e quebrantado – são eles que são exaltados como felizes.
Com essa afirmação da primeira bem-aventurança já se estabeleceu a enorme diferença contra os escribas farisaicos. Os fariseus diziam: Quem cumpre a lei com toda a exatidão é rico em Deus. Quem, além disso, ainda observa literalmente todas as tradições transmitidas dos pais, a Halachá, é muito rico em Deus.
A isso Jesus diz um grande não, ao afirmar: “Ser pobre, quebrantar-se, converter-se é o único caminho para entrar no reino dos céus” (Cf. Jo 3). Já a primeira bem-aventurança declara a mesmíssima coisa que João Batista expressou através do chamado ao arrependimento e Jesus, prosseguindo esse chamado, confirmou, (cf. o exposto em 3.13ss e 4.17)!

4 Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados.
A tradução “os que choram” é muito limitada. Os que se lamentam são também, e especialmente, aqueles que descobriram toda a miséria do “eu” corrompido pelo pecado. Sua tristeza é resultado daquele susto abissal diante da natureza pecadora cabalmente decaída e condenável do ser humano, diante do abismo cheio de veneno do pecado. Nessa situação totalmente desesperadora da pessoa, unicamente o Senhor pode proporcionar o consolo, a saber, que só ele consegue vencer.

5 Bem-aventurados os mansos, porque herdarão a terra.
O termo grego para mansidão inclui o oposto da ira, da irritação, do melindre que se consome em mágoas e geme de amargura. Dito positivamente, mansidão é: “ser amável, sem amargura”. Portanto, são bem-aventurados os que são capazes de suportar sem amargura e sempre de modo amigável as cargas pesadas que lhes são impostas. Para qual atitude precisamos de mais força, para reagir teimosamente e revidar quando pessoas se opõem a nós, ou para permanecer objetivos e amáveis?
“Herdarão a terra”, isto é, a atitude de suportar pacientemente e com amor exerce uma influência benéfica que supera a baixeza. Poderes vitoriosos emanam de uma vida dessas. Pessoas mansas submetem já agora a terra ao reinado de Deus.
Entretanto, não faz parte da “mansidão” que aceitemos calados a injustiça de outros como se fosse justa. Injustiça continua sendo injustiça. Por isso o manso aguarda pelo tempo e pela oportunidade para esclarecer ao outro com objetividade e amizade (mais precisamente, com verdade e lealdade) qual é a injustiça dele. Se o outro não aceitar o alerta, o manso não se enche de ira e ódio, e sim de paciência e força para suportar, entregando tudo àquele que julga com justiça. O manso sabe esperar!

6 Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão fartos.
Ter fome e sede é o mesmo que “perseguir a santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor” (Hb 12.14). Satisfação e refrigério por meio de Jesus há somente quando temos fome e sede, quando desejamos ardentemente agir em tudo como agrada ao Senhor, em pensamentos, palavras e ações. Por conseguinte, a justiça é dádiva, que não se conquista com esforço, e sim se recebe de presente. Justiça não é produzida, mas recebida. Novamente, que contraste com a “justiça dos fariseus” (Cf. sobre v. 20)!

7 Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia.
Misericordiosas são as pessoas profundamente comovidas e perplexas com o fato de que, da parte de Deus, lhes está sendo presenteado continuamente algo ao qual não teriam o mínimo direito. Sentem-se envolvidos pela misericórdia de Deus, assim como o mar envolve totalmente o peixinho. Por estarem envoltos permanentemente pelo mar da misericórdia de Deus, que aponta para as eternidades antes de todos os tempos (Ef 1.4) e que perdurará além de nosso breve tempo de vida para todas as eternidades, não podem sequer ser diferentes do que misericordiosos diante dos outros.
– O fariseu era misericordioso somente com pessoas do seu nível, não com publicanos, pecadores e gentios.


8 Bem-aventurados os limpos de coração, porque verão a Deus.
O termo “coração” refere-se a toda a vida anímica, ou seja, ao pensar, sentir e querer! Assim como no próprio Deus tudo é verdade, sinceridade e pureza, também os de coração limpo têm a vida cheia de verdade, sinceridade e pureza! O exterior é revelação do interior. O ser é tudo! Aparência não é nada. Impureza é estar separado de Deus. Porém, aos que são verdadeiros e puros no coração, é dado ver a Deus. Em Jesus já se pode ver Deus agora. Como é maravilhoso contemplar o Senhor desde já na sua palavra. Mas como será imensuravelmente maravilhoso no futuro!

9 Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus.
Ser “pacificador”, ou literalmente “realizar a paz”, é algo bem diferente do que conservar a paz tolerando e suportando as adversidades. Pacificador, como já diz a palavra, é alguém que estabelece a paz, que faz a paz entre pessoas. Assim como o ar está sempre cheio de todo tipo de bactérias, a atmosfera espiritual sempre está carregada com os bacilos da briga, do melindre, da inveja, da desconfiança etc. Disso resulta, por “contaminação”, a discórdia. É para dentro dessa situação que o pacificador deve constantemente produzir a paz. Fazendo -o, realiza no varejo o que Deus realizou e continua realizando. Ele, o Deus da paz, estabeleceu a paz entre si e as pessoas, entre si e seus inimigos! Qual é, pois, a felicidade dos pacificadores? São filhos de Deus. – Não se lê “crianças” de
Deus mas, como no v. 45, “filhos”. É inimaginável o que significa ser filho de Deus. Leia Romanos 8 (cf. Rienecker, Comentário aos Efésios).

10-12 Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus. Bem-aventurados sois quando, por minha causa, vos injuriarem, e vos perseguirem, e, mentindo, disserem todo mal contra vós. Regozijai-vos e exultai, porque é grande o vosso galardão nos céus; pois assim perseguiram aos profetas que viveram antes de vós.
Esta é uma palavra estranha para o homem natural. Na sua opinião, os cristãos são pessoas dignas de pena. Pela sentença de Jesus, porém, são pessoas invejáveis, que a toda hora têm motivo de alegrar-se com júbilo, sim, com saltos.
O cantor do Salmo 73 entoa: “Ainda que a minha carne e o meu coração desfaleçam, Deus é a fortaleza do meu coração e a minha herança para sempre” (v. 26). Este é, pois, o segredo da alegria no coração, a saber, ter o suficiente em Deus. Mesmo que o mundo inimigo de Deus jogue na prisão pessoas como Paulo e Silas, que lance na fornalha de fogo os três amigos de Daniel, uma coisa não lhes pode tirar: a comunhão com Deus. E mesmo que se aqueça a fornalha sete vezes mais do que de costume, o Senhor entra no fogo ardente como o quarto aliado.
Lemos no v. 12: Porque é grande o vosso galardão nos céus. Disso poderíamos deduzir que a comunidade sofre tantas coisas porque, afinal, será recompensada, porque em última análise representa o pensamento de mérito e recompensa dos fariseus, devotando-se novamente à justificação pelas obras. Mas esse é um grande erro. O texto não se refere ao consolo por uma recompensa no além. Na expressão “nos céus” podemos certamente interpretar: “reinado dos céus”. Como já dissemos, esse reinado dos céus consiste de duas esferas, uma já iniciada e outra ainda futura. Ambas existem simultaneamente, sobrepõem-se, situam-se lado a lado e não uma depois da outra.
Logo, não se deveria falar de uma sequência temporal das duas esferas e da posterior recompensa, mas da simultaneidade do sacrifício de sofrimento dos discípulos e da aceitação pelo Senhor já agora. Em outras palavras: Quando aqui se está rejeitando, lá se está reconhecendo. Enquanto aqui em baixo as pessoas ferem os discípulos, o Senhor os trata e cura. Enquanto aqui as pessoas lhes causam injustiça, o Senhor lhes faz o bem sem cessar, já aqui e agora, mas de forma inicial (incógnita). Porém então o fará de modo pleno (público), glorioso e grandioso, para todas as eternidades.
Seria melhor traduzir a palavra “recompensa” com retribuição no sentido de gratidão, de presentear com glória divina imerecida. Esse presente da glória de Deus será conferido ao seguidor de Cristo realmente, é, visivelmente para todas as eternidades, sem fim, em crescente plenitude. Um presente desses não está em nenhuma proporção com nosso sofrimento e trabalho para o Senhor.
Por isso não se pode falar de interpretar a palavra “recompensa” no sentido de “pagamento por um serviço prestado”!

O caráter de compromisso do evangelho:
As parábolas do sal, da luz e da cidade sobre o monte, 5.13-16

13 Vós sois o sal da terra; ora, se o sal vier a ser insípido, como lhe restaurar o sabor? Para nada mais presta senão para, lançado fora, ser pisado pelos homens.
O pequeno grupo de discípulos no monte, todos eles pessoas simples, e em sua continuação a comunidade de Jesus, devem ser sal da terra! Deduz-se que a terra é comparável a uma comida indigesta. Atualmente pode-se constatá-lo de novo em vista de tanta crueldade! Às vezes nos vem a pergunta por que este mundo decaído de Deus e, por isso, indigesto, não se arruinou há muito tempo em sua podridão e por que a paciência de Deus ainda continua. – Por causa do sal divino que ainda está no mundo, Deus poupa o mundo e retarda o seu julgamento definitivo!
Em meros termos de quantidade, a relação entre o número de seguidores de Cristo e o mundo será semelhante à proporção entre o grão de sal e a comida. Por isso é preciso não esmorecer por estar sozinho como cristão em um contexto ateu numericamente superior. O cristão continua tendo o chamado de salgar o seu contexto como uma comida. Essa é a promessa ao cristão que vive solitário. Na verdade, quantas vezes o poder de salgar de um pequeno grão foi imensuravelmente eficaz.
Ser sal é uma vocação importante. Entretanto, quem quiser cumpri-la precisa saber do sacrifício que está ligado a ela. Pois, quando o sal quer cumprir sua tarefa, precisa dissolver-se. O serviço do sal sempre acontece pela entrega de si próprio.
O sal que não se entrega, o sal que permanece no saleiro, perde o seu poder de salgar e por nada será revigorado como sal. No tempo de Jesus, o sal (obtido às margens do mar Morto ou de pequenos lagos na beira do deserto da Síria) facilmente adquiria um gosto insosso e mofado por causa da mistura maior de gesso ou restos de plantas. Por isso não podia ficar muito tempo armazenado. Precisava sair do saleiro, entrar nas comidas. – Assim os cristãos vivos precisam inserir-se no meio do mundo. Ademais, quando se diz que os discípulos devem ser sal da terra, o seu serviço de sal não tem limites. Eles são colocados em relação com a humanidade toda e com todas as suas esferas, também as esferas cultural, econômica e política. A palavra do sal vale não apenas horizontalmente até os confins da terra, mas também verticalmente, em todos os âmbitos da vida do ser humano de baixo para cima. – Assim, a primeira palavra do evangelho também é a última, a qual mostra aos seguidores de Cristo sua tarefa como sal da terra.
Expressando-o de outro modo: Ao cristão se diz que, aquilo que ele recebe da palavra e da oração, não o recebe para si sozinho. O sentido da pregação evangélica da palavra não é um estilo edificante na igreja, um clima emocionante e cerimonioso. Não, o sentido da palavra do sal é “trabalhar”, “agiotar” com o que nos foi confiado. Todo o mais é sal que não é sal e luz que não alumia. – Nada causa tanta aversão como um cristianismo egoísta que fica indiferente diante dos que ainda estão do lado de fora. Isso não é sal, mas sujeira, que para nada mais serve que ser lançado fora e pisoteado pelas pessoas. Uma palavra abaladora! Uma palavra de juízo com efeito profético incrível! “Não ter mais nenhuma outra utilidade que ser pisado!” Uma palavra terrível sobre um cristianismo que apenas se auto-satisfaz e não trabalha nem se multiplica.

14-16 Vós sois a luz do mundo! Não se pode esconder a cidade edificada sobre um monte; nem se acende uma candeia para colocá-la debaixo do alqueire, mas no velador, e alumia a todos os que se encontram na casa. Assim brilhe também a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem a vosso Pai que está nos céus!
Se os discípulos devem ser a luz do mundo, está subentendido que o mundo é um único grande espaço escuro. Nessa escuridão as pessoas se batem, ferem-se no corpo e na alma. Quem traz luz para dentro dessas trevas, que significam noite e desesperança totais, é unicamente Jesus e sua turma de seguidores “iluminados” por ele!
Assim como o sal se dissolve no serviço, também a luz se desgasta ao brilhar! Novamente enfatiza-se aqui a grande ideia de compromisso e sacrifício do serviço de discípulo. Singularmente a palavra de “não colocar debaixo do cesto” é dedicada a essa ideia de compromisso. Por isso Jesus não diz: Mostrem suas obras, exibam-nas a todos!, mas declara: Assim como a tarefa da luz é brilhar, assim o dever mais sagrado de vocês é praticar o amor e a correta conduta cristã. A palavra de Jesus está tão distante do exibicionismo com a obra de amor quanto do não-testemunho temeroso, do não querer testemunhar! Há uma sutil diferença entre mostrar-se com sua “fé” e suas “experiências com Deus”, e testemunhar a fé! A primeira é ação do “eu” religioso, a segunda é o agir de Deus! Somente por essa última o Pai no céu será glorificado. Nisso está o maravilhoso do testemunho, mas nisso reside também o perigo de se dar um relato de fé sobre suas experiências com o Senhor!
No texto grego, com muito mais evidência do que na tradução, a frase brilhe a vossa luz diante dos homens faz cair a ênfase sobre “luz” e não, p. ex., no “vossa”. Do texto original evidencia-se, portanto, que é a luz que tem de brilhar. O discípulo tem somente a incumbência de permitir a livre circulação aos raios da luz, de não interpor-se no caminho da luz!
Esse pensamento aprofunda, a partir do original, o que já afirmamos acima em relação ao testemunho correto! É significativo constatar onde Jesus diz que reside a força dos seus discípulos para brilhar: eles iluminam o mundo com o seu agir. Em outras passagens da Escritura, o peso é colocado sobre a palavra dos discípulos. Aqui vigora, não a palavra que eles proclamam, mas a obra que realizam. Jesus está dizendo: Se vocês discípulos realmente fizerem aquilo para o que eu os chamei neste mundo, então vocês, assim como a luz brilha, realizarão ações diante das quais também um não-cristão sentirá que esses feitos são presentes do mundo invisível, sendo dessa maneira direcionado para o Pai no alto, e o louvará!
A partir do texto original grego podemos fazer mais uma descoberta importante. No v. 16b, para que vejam as vossas boas obras, encontra-se uma especificidade linguística. Pois vossas vem antes do substantivo (com artigo definido). Esse tipo de formulação encontramos mais uma vez em 23.8s, onde se lê com ênfase: “Um só é o vosso mestre, um só é o vosso pai”. Ao se enfatizar o “vosso”, visa-se conscientemente destacar o contraste. Isso significa, no nosso caso, em v. 16b, que as obras dos outros não são obras boas, ao passo que as dos discípulos são boas.
A fundamentação para afirmações tão formidáveis é apresentada por Paulo em Ef 2.10.
Outras ênfases extremas do “vosso” como esta encontram-se em 10.30 e 13.16.
Às figuras do sal e da luz Jesus ainda acrescentou uma terceira, a da cidade sobre o monte.
O Senhor quer expressar com ela o seguinte: Não há como vocês, discípulos, possam ficar escondidos neste mundo. As pessoas veem vocês! Reparam em vocês. Assim como não se pode passar ao largo de Jerusalém sem ter notado essa cidade sobre o monte, assim também não pode ser simplesmente ignorada a comunidade de Jesus na terra. Ela, enfim, está aí. Quer o mundo goste, quer não, precisa confrontar-se com ela.
Acaso Mateus não está demonstrando de novo que pensa universalmente, que não se encontra nele nenhum vestígio de judaísmo? Não é verdade que, desde logo, ele entendeu o Senhor integral e plenamente? A palavra do sal e da luz e da cidade sobre o monte mostra, como já expusemos, que o chamado dos discípulos transcende muito além de Israel, que ele abrange todos os povos e nações, a humanidade como tal.

O cumprimento da lei do AT por Jesus, 5.17-19

Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim para revogar, vim para cumprir.
Porque em verdade vos digo: Até que o céu e a terra passem, nem um i ou um til jamais passará da Lei, até que tudo se cumpra.
Aquele, pois, que violar um destes mandamentos, posto que dos menores, e assim ensinar aos homens, será considerado mínimo no reino dos céus; aquele, porém, que os observar e ensinar, esse será considerado grande no reino dos céus.
Estes versículos propõem questões difíceis. Jesus diz: A lei precisa ser cumprida até no menor mandamento. Cada i ou til tem de ser válido. Se um dos discípulos não observar um dos menores mandamentos ou o declarar insignificante, deverá ser chamado o menor no reino dos céus! Mas o que ensina e “cumpre” até o mínimo mandamento, será considerado grande no reino dos céus.
Na boca de Jesus essas palavras mostram-se como algo impossível. Jesus aparece praticamente como “amigo dos fariseus”! Poderíamos pensar que ele é aliado deles. Pois eram eles os que cumpriam a lei até no menor detalhe!
E agora o Senhor exige a mesma coisa? Isso é inconcebível! Pois observar literalmente as “mínimas” prescrições legais judaicas seria o exato contrário daquilo que o Senhor havia dito antes nas bem-aventuranças e continuava dizendo e vivendo em todo o sermão do Monte e depois.
O que significa aqui “lei” e “menor dos mandamentos”? Que quer dizer “cumprir”? Do mesmo modo como Deus não pode revogar suas promessas do AT, pelo contrário, enviou Jesus como “sim” e “amém” dessas promessas (2Co 1.20), Deus também não dissolve a lei, mas envia seu Filho para cumpri-la. As profecias do AT equivalem a um recipiente vazio apenas durante o tempo em que o acontecimento ao qual indicam ainda não se tornou um fato. Somente com a realização do acontecimento no NT o recipiente fica cheio. Do mesmo modo, pois, como as profecias estão vazias sem o cumprimento, também a lei está vazia enquanto a obediência que lhe é devida não for prestada. Em Jesus Cristo, porém, profecia e lei foram cumpridas, isto é, tornaram-se “realidade”. Em outras palavras: Cumprir significa corresponder com palavras e ações para que aconteça tudo o que profecia e lei requerem! A vida de Jesus foi essa singular “realização do que a profecia e a lei requerem”! Schlatter afirma: “Até agora a lei de Deus era transgredida. Mas agora veio aquele que faz o que Deus prometeu e determinou!”
Vejamos alguns exemplos, a fim de esclarecer para nós o recém-exposto cumprimento da lei através do procedimento e da vida de Jesus! Quando olhamos para a vida de Jesus, pensamos inicialmente: O Senhor está dissolvendo a lei:
• Jesus não obedece o mandamento do sábado (cf. Mt 12.1-14; Mc 2.23-28; Lc 6.1-5; 13.10-17;
14.1-5; Jo 5.9-16; 9.14-16);
• Jesus transgride os mandamentos do jejum (Mt 9.14s; Mc 2.18-20; Lc 5.33);
• Jesus ofende as ordens de purificação (Mt 15.1-20; Mc 7.1-23).
Se, pois, o Senhor transgride dessa maneira a lei, em que consiste o cumprimento da lei? O cumprimento da lei, como Jesus o entende, não consiste em observar, por fora, mecânica e textualmente os mandamentos e todos os acréscimos e adendos (Halachá); “o amor é o cumprimento da lei!”
Tomemos apenas um exemplo para elucidar uma vez o “cumprimento” da lei afirmado por Jesus. O mandamento do AT “amarás o teu próximo como a ti mesmo” foi interpretado pelos escribas como segue: Você precisa apenas amar o membro da sua comunidade: o fariseu somente os fariseus etc., pois unicamente o colega é o próximo, e mais ninguém. Amar o coletor de impostos e o pecador e até mesmo o gentio não era apenas desnecessário mas até contra o mandamento de Deus. – Assim agiam os fariseus (cf. o exposto sobre 5.43ss).
Jesus diz: O amor deve ser levado a cada um, também ao publicano, ao pecador e ao gentio, o qual para o fariseu não passava de escória da humanidade, plebe da rua. Se alguém matasse um gentio, o tribunal judeu não citaria essa pessoa, por ser considerado um caso não culpável. Pois “assassino é somente aquele que mata um concidadão!” Essa interpretação os escribas fizeram da lei.
Nessa perspectiva do seu mundo contemporâneo podemos agora entender o que Jesus afirma quando diz que, através dele, a lei deveria ser levada ao cumprimento até o i e o til. Quando cada pessoa (para retornar ao exemplo acima), também a inimiga, for amada até mesmo com o amor ágape, somente e unicamente então a lei e os profetas são cumpridos no seu sentido real, até o i e o til. “O amor ágape é o cumprimento da lei.”
Por consequência, os v. 17-19 não revelam de modo algum uma associação com os fariseus. Tampouco se explicam como acréscimo posterior judaico-cristão, como pensam alguns teólogos. Pelo contrário, justamente as palavras de “fidelidade à letra” fazem-nos reconhecer de modo mais profundo a sua missão como o autêntico e verdadeiro cumpridor da lei do AT. As palavras seguintes do sermão do Monte ainda o comprovarão melhor.

O tema do sermão do Monte, 5.20

Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder em muito a dos escribas e fariseus, jamais entrareis no reino dos céus!
Observação preliminar
Por ser a palavra da justiça excedente tão importante, queremos expor ainda, para aprofundar a sua compreensão, o que Strack-Billerbeck disse sobre ela: “A justiça dos escribas e fariseus é caracterizada por Paulo, aquele apóstolo que, em virtude de sua formação, obtivera uma compreensão exata da opinião dominante dos fariseus, como uma „justiça a partir da lei‟, ou como uma „justiça produzida pela lei e suas obras‟” (cf. Rm 3.20; 10.5; Gl 2.16; 3.21; Fp 3.9). Como, pois, pela opinião da velha sinagoga, procede a justiça do israelita a partir da lei e de suas obras? A literatura rabínica ensina sobre isso. A questão é esta: Todo cumprimento de um mandamento, enquanto ato de obediência ao legislador divino, contém em si um mérito do israelita, assim como toda transgressão da lei acarreta uma culpa perante Deus. Outros méritos diante de Deus são conquistados mediante dar esmolas, jejuar, praticar obras especiais de amor, e não por último pelo estudo da lei. O que estabelece a respectiva posição jurídica da pessoa diante de Deus é a relação entre os méritos da pessoa e suas dívidas por transgressões. Quando os méritos predominam, a pessoa é considerada “justa” perante Deus. Quando predominam suas dívidas por transgressões, ela é considerada ofensora de Deus.
Ainda não está esclarecida a importante pergunta: O que é cumprir a lei? O que é transgredi-la? A velha sinagoga diz que qualquer cumprimento literal da lei deve ser considerado como cumprimento pleno e satisfatório!
Em decorrência, a justiça a partir da lei é construída quando o israelita adquire, pela observância pontual ainda que somente exterior das diferentes prescrições da lei, tal quantidade de cumprimentos e tão grande tesouro de méritos, que as transgressões da lei são excedidas em número e peso. Quando existe essa condição do mais, do plus na obediência à lei em relação às transgressões, Deus considera a pessoa como “justa”.
Jesus não reconheceu esse tipo de justiça: “Se a vossa justiça não se tornar consideravelmente maior que a dos escribas e fariseus, não entrareis no reino dos céus”. Mas Jesus não pára aí! Ele também ingressa na luta contra a justiça farisaica proveniente da lei! Isso ele faz destruindo o fundamento sobre o qual se baseia a doutrina dos méritos dos escribas. Esse fundamento era a afirmação de que o cumprimento literal da lei traria como consequência jurídica necessária a justiça perante Deus.
Contra essa afirmação Jesus protesta em todo o sermão do Monte. O decisivo não é cumprir a lei ao pé da letra: Deus quer uma cumprimento melhor de seus mandamentos, um cumprimento no espírito e na verdade.
O significado disso Jesus explica nos diversos mandamentos. Quem considerar o cumprimento dos mandamentos como Jesus, logo reconhecerá que a justiça por mérito dos fariseus acabou de vez. Perante o tribunal da consciência de toda pessoa sincera, ela se desfaz cabal e plenamente! O ser humano reconhece que não é capaz de cumprir nem um mandamento sequer! Não há ninguém que saia daí justificado, nem um sequer!
Até aqui alguns pensamentos de Strack-Billerbeck.
Que justiça é essa que, conforme dizem as traduções, “excede”, “transborda”, que é “melhor”, “mais excelente”? Para podermos responder a essa indagação, vejamos rapidamente a justiça dos fariseus!
Os fariseus acreditavam que, cumprindo exteriormente todos os mandamentos e estatutos, seriam bons perante Deus, seriam justos por causa da ação produzida. Por isso os fariseus eram chamados de “justificados”.
É que, de acordo com a doutrina judaica, existia um tipo de contrato. Como um comerciante, Deus anota continuamente os créditos e débitos da pessoa com ele. Homem e Deus estão face a face como parceiros iguais. Todas as boas obras praticadas pelo homem são registradas por Deus, “com base no relacionamento jurídico-comercial entre ele e a pessoa”, como crédito desta. Dito de forma grosseira: Como você age comigo, ajo eu com você. Se você faz boas obras, recebe um ponto de crédito, tem saúde, torna-se rico e é abençoado. Se você não faz nada de bom, ganha um ponto negativo, fica doente, sofre desgraças, empobrece, não é abençoado etc.
Era essa, a grosso modo, a opinião da sinagoga (por isso também podemos entender, entre outras,
a pergunta dos discípulos em Jo 9.2).
Como era terrível uma religião dessas! Que blasfêmia é esse rebaixamento da santidade e majestade de Deus ao nível dos homens, como se fosse um parceiro de direitos iguais e no mesmo patamar, como se procedesse igual a um comerciante! Não existe uma profanação pior do Deus três vezes santo! Jesus precisa repudiar total e plenamente essa justiça do mérito e da produção construída sobre a “blasfêmia contra Deus”. Ele declara: “A não ser que a justiça de vocês seja em muito maior medida bem diferente, uma justiça que exceda em muito a dos fariseus, vocês não poderão entrar no reino dos céus”. Essa palavra de Jesus é verdadeira, mas terrível, para todos os fariseus e demais ouvintes, uma palavra que virava tudo do avesso.
Compreendemos inteiramente a palavra final da pregação, onde lemos: “Quando Jesus acabou de proferir estas palavras, estavam as multidões maravilhadas da sua doutrina” (7.28). Elas estavam profundamente abaladas porque Jesus desmascarou cabalmente os fariseus, que por todos eram considerados como “os justos”, negando-lhes o reino de Deus de modo radical.
Repetindo: Jesus não revoga a lei, mas cumpre-a ao alçá-la à verdadeira vigência. Quem busca realizar esse sentido verdadeiro da lei logo descobrirá que a justiça excedente, a saber, a justiça bem diferente, produz primeiramente a plena e cabal quebra e bancarrota de qualquer justiça pela produção (veja as bem-aventuranças em que justamente o ser pobre, a “mendicância” perante Deus, é enaltecida como felicidade, por causar o milagre da meia volta). Esse não ser nada e não saber nada abre caminho para a justiça de Deus. E aqueles que agora, pela justiça de Deus, se tornaram totalmente outros, também precisam, como tais, agir de modo totalmente outro, precisam fazer algo de “especial”, não por força própria, mas pela força do alto. A expressão “algo de especial” surge textualmente no v. 47. Lá veremos mais!

Ira é igual a assassinato, 5.21-26

21,22 Ouvistes que foi dito aos antigos: Não matarás; e: Quem matar estará sujeito a julgamento. Eu, porém, vos digo que todo aquele que [sem motivo] se irar contra seu irmão estará sujeito a julgamento; e quem proferir um insulto a seu irmão estará sujeito a julgamento do tribunal; e quem lhe chamar: Tolo, estará sujeito ao inferno de fogo.
Jesus começa esclarecendo a justiça excedente através de três exemplos dos Dez Mandamentos. Como primeiro exemplo Jesus cita o mandamento não matarás.
A frase eu, porém, vos digo não quer ser um desprezo aos anciãos, um desprezo que tenta se livrar do passado, um desdém, porém máxima consideração do antigo. A lei é absolutamente santa, é inalterável, é o que persiste e perdura sem mudanças nas modificações do tempo. Mas a lei de Deus não olha para a ação, ela vê mais fundo, observa a origem da ação, a mentalidade que está por detrás dela. “Pois do coração procedem os maus pensamentos: homicídio…” (Mt 15.19). Dessa maneira Jesus vai à raiz, ele é radical (radix = raiz), mostrando-nos que a ira é igual ao assassinato. Schlatter explica: “Para os judeus era difícil reconhecer a natureza culposa de processos interiores do coração (i. é, os processos na alma e as atividades mentais)”.
Quando Jesus afirma: Eu, porém, vos digo: aquele que se irar contra seu irmão estará sujeito ao julgamento, as palavras “vos” e “irmão” apontam para os discípulos. É para eles que vale essa palavra do Senhor, porque os discípulos formam uma irmandade.
Nessa irmandade não pode existir a ira. Que significa irar-se? Com base no texto original, a ira pode mostrar-se em duas direções: Para dentro e para fora.
Vista para dentro, a ira equivale a estar amargurado, estar raivoso contra o irmão, ficar exasperado, carregar rancor dentro de si, distanciar-se do irmão, manter-se separado dele, consumir-se intimamente.
Para fora, irar-se significa estar agitado, enfurecer-se, agredir, ser duro, injusto, externar uma mentalidade áspera, ter acessos de cólera. Tudo isso é assassinato do irmão.
É transgressão do mandamento: Não matarás.
É uma palavra muito séria de Jesus, que alumia para dentro do último cantinho de nosso coração e nos julga e purifica continuamente. Nosso constante fracasso é trazido à luz. Ter de admitir sempre de novo esse fracasso nos preserva de toda confiança no poder próprio e destroça integralmente toda presunção e todo orgulho. “O homem vê o exterior, porém o Senhor, o coração” (1Sm 16.7). Quando no coração se encontram todos os tipos citados de ira, o discípulo já se tornou culpado do julgamento, porque tornou-se um assassino do irmão. Como Jesus é extremamente severo com os seus! A sua palavra é “apta para discernir os pensamentos e propósitos do coração” (Hb 4.12).
Passamos para o segundo aspecto.
Quando a revolta interior ou a fúria exterior são seguidas do duro e amargo insulto raka, “cabeça oca, não faz parte de nós”, então esse assassino do irmão deve ser julgado pelo tribunal supremo desta terra, o Sinédrio (quanto ao Sinédrio, cf. o exposto sobre 2.4).
Em o terceiro ponto:
Quem se deixa arrastar pela ira ao ponto de agredir o irmão com uma palavra ofensiva como tolo, “vá para o inferno, desgraçado (descrente)”, esse próprio deverá ir para o inferno.
De tudo o que foi dito resulta para os membros da comunidade de Jesus que cada um precisa cuidar com extrema exatidão do seu relacionamento com o irmão e examinar sempre de novo, à luz da palavra de Deus, seus pensamentos e suas palavras, e perguntar-se: Como estou em relação a meu irmão? Como ele está comigo? Tão logo um tiver amargura no coração em relação ao outro, ou inveja, ódio, desprezo, satisfação malévola, contrariedade, ou quando um guarda rancor do outro, quando um, irritado, lança uma palavra dura contra o outro, isso é assassinato. Qualquer aborrecimento que continua corroendo o coração é assassinato do irmão.
Lutero afirma: “Tantos membros quantos você possui, tantas maneiras você poderá achar de matar, seja com a mão, a língua, o coração, o gesto, olhando alguém amargamente… não gostando de ouvir falar dele: tudo isso significa „matar‟. Porque nesse caso o coração e tudo o que há em você está disposto a desejar que ele já estivesse morto. E, ainda que a mão fique parada, a língua silencie, os olhos e ouvidos se escondam, de fato o coração está cheio de assassinato e homicídio.”
Essa atitude, entretanto, não é apenas assassinar o irmão, mas também escarnecer de Deus. Pois enquanto persistir o rancor contra o irmão, estará interrompida também a ligação com Deus. Podemos notá-lo logo quando tentamos orar (cf. At 9.5c).
Num estado desses, desonraríamos a Deus se quiséssemos entoar hinos de louvor com a comunidade em oração.
Entendemos agora por que Jesus acrescenta os v. 23-26 diretamente depois da palavra do assassinato e da ira.
Após a advertência de teor negativo dos v. 21s, Jesus segue com dois exemplos positivos: Que sejam o lema de nossa vida não a amargura, irritação, inveja e ódio, mas sim o amor e a disposição para a paz.

23-26 Se, pois, ao trazeres ao altar a tua oferta, ali te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa perante o altar a tua oferta, vai primeiro reconciliar-te com teu irmão; e, então, voltando, faze a tua oferta. Entra em acordo sem demora com o teu adversário, enquanto estás com ele a caminho, para que o adversário não te entregue ao juiz, o juiz, ao oficial de justiça, e sejas recolhido à prisão. Em verdade te digo que não sairás dali, enquanto não pagares o último centavo.
Os dois exemplos não nos mostram como podemos nos precaver da ira, porém ambos nos mostram como devemos proceder quando já nos tornamos culpados da ira!
No primeiro exemplo alguém está prestes a trazer um sacrifício para o sacerdote ofertar sobre o altar. Aí lembra-se subitamente: Meu irmão tem algo contra mim! Eu o magoei. Jesus diz: Largue sua oferta diante do altar, interrompa a cerimônia do sacrifício, por mais aborrecido que fique o sacerdote com a interrupção, vá primeiro até o seu irmão e reconcilie-se com ele!
Enquanto a relação com o irmão não for passada a limpo, toda oração e leitura da Bíblia e todo culto não somente são inúteis mas também desgastantes e pecado.
Para Deus é muitíssimo mais importante e mais necessário um diálogo, pelo qual se supera uma amargura ou uma perturbação da fraternidade, do que culto e celebração da Ceia. O primeiro exemplo nos v. 23s elabora a afirmação de Oséias 6.6: “Eu quero que vocês se amem e não que me ofereçam sacrifícios” (BLH), e coloca a reconciliação e o amor acima do culto. O dever da reconciliação existe até mesmo quando não eu tiver algo contra o outro, mas quando este tiver algo contra mim. Jesus nem sequer analisa se sou eu o culpado ou não. Basta que o outro esteja irado e amargurado comigo. Eu devo ser o primeiro a ir até ele e estender a mão para a reconciliação.
O segundo exemplo reveste com a forma de uma parábola a mesma exigência de estar pronto para a reconciliação. Estenda a mão enquanto você ainda está junto do irmão. E, quando todas as tentativas de entendimento fracassaram, devemos ainda aproveitar e explorar com toda seriedade a última chance e possibilidade, antes que aconteça a ruptura definitiva. Sublinhando as palavras de Jesus, Paulo diz em Romanos 12.18: “Façam todo o possível para viver em paz uns com os outros” (BLH).
Quando, porém, apesar dos mais sérios e sinceros esforços, não é possível manter a paz, então aguarde. Não exploda em ira, nem engula o problema, mas entregue-o a Deus. Espere silenciosamente até que Deus mesmo talvez mude a situação! Deixe-a amadurecer! Você, apesar disso, continua amado por Deus. “Não vos vingueis a vós mesmos, amados mas dai lugar à ira [divina]” (Rm 12.19). Essa referência à retribuição de Deus no juízo não abre caminho para a necessidade humana de vingança. Pelo contrário, os versículos seguintes do cap. 5, da bofetada, do amor ao inimigo etc., evidenciam que o discípulo de Jesus precisa, sempre de novo, oferecer amor em troca do ódio, bênção em troca da maldição!

Impureza de pensamentos é adultério, 5.27-32

27,28 Ouvistes que foi dito: Não adulterarás. Eu, porém, vos digo: qualquer que olhar para uma mulher com intenção impura, no coração, já adulterou com ela.
Mais uma vez o Senhor vai até a raiz, i. é, até o mundo dos pensamentos, o local em que se origina a ação. Pois “do coração procedem os maus desígnios, […] adultérios, prostituição…” (Mt 15.19).
No judaísmo predominava a opinião de que a mulher era um ser inferior, que sempre puxava o homem para baixo. Por isso o judeu piedoso não podia olhar para uma mulher. O farisaísmo pensava que, desse modo, estaria servindo severa e conscienciosamente à castidade! Por isso o escriba também ensinava: “Não fale muito com uma mulher. Todo o que fala muito com uma mulher atrai desgraça para si, e no final herdará o inferno. Por isso não fale com uma mulher na rua, ainda que seja sua própria esposa, filha ou irmã. Pois nem todos conhecem seu parentesco!”
Pela mesma razão não se permite que a mulher sirva o homem, nem se saúda uma mulher. Todas essas eram determinações dos fariseus.
Falar com um ser feminino era proibido porque, ao falar, era necessário olhar para a mulher. Olhar para uma mulher, porém, era pecado, inclusive olhar para seus vestidos coloridos. Havia um grupo entre os fariseus que, para não terem de, por engano, olhar para uma mulher, sempre andavam pela rua com os olhos semi-cerrados. Por se machucarem frequentemente nesse procedimento, esse grupo se denominava “os fariseus da perda de sangue”.
Tantos esforços para evitar olhar para uma mulher partiam do ponto de vista de que a mulher era apenas um ser sexual que seduzia o homem para o pecado. Dizia-se que a voz da mulher faz parte da indecência, os cabelos da mulher fazem parte da indecência etc. É terrível ver quanto a mulher foi humilhada, quanto foi exposta ao desprezo pelos fariseus. A castidade rígida e legalista dos fariseus na verdade nada mais era que dura falta de amor e incrível orgulho diante do sexo feminino.
Como era diferente, agora, a atitude de Jesus diante da mulher. Jesus não rejeita de modo algum que se olhe para a mulher, condena apenas olhar para ela com desejo. Por isso o adendo com intenção impura. “Desejar” refere-se ao “desejo egoísta, pecaminoso”. Em outras palavras: Quem transgride o mandamento da castidade não é aquele que chegou ao ponto de executar a ação de adultério, mas já é um adúltero quem contempla com olhares desejosos uma mulher casada ou noiva (ou seja, quem se imagina como seria se pudesse considerar aquela mulher como sua). Porque o matrimônio alheio deve ser considerado sagrado e inviolável. – Entre os sexos, no entanto, deve acontecer um relacionamento puro, puro em pensamentos e palavras. Não há a menor menção de uma vida ascética.
Encarar a mulher do outro, falar-lhe com pureza, permitir que ela o sirva (pela concepção farisaica o abençoado ministério da diaconia feminina não seria nada mais que transgredir a castidade), dirigir uma saudação à mulher, não considerar sua voz e seus cabelos como algo indecente, tudo isso não representa falta de castidade. Pelo contrário, é um procedimento imperioso em respeito e honra à mulher, criada e dada por Deus para servir à vida orgânica e eterna.
Quem se posiciona diante da mulher da maneira como Jesus exige, cumpre até o i e o til do mandamento não adulterarás. Procede assim por amor e máximo respeito diante do sexo oposto.
Contrariamente, quem fecha os olhos, recolhe a mão e não saúda nem fala com a mulher, magoa e despreza-a profundamente. Fere, assim, também a sagrada ordem da criação de Deus, ofendendo-o, ele que é o Senhor da criação.
O próprio Jesus não apenas olhava para as mulheres, mas também conversava com elas, o que seria impossível entre os fariseus (cf. Jo 4). – Dos discípulos o Senhor exige bondade e respeito para com a mulher. É correto falar desinibidamente com a mulher, pois ela não é o ser inferior como pensavam os fariseus, mas, sim, antes e profundamente, uma criatura de Deus igual ao homem. T.
Bovet afirma: “Constitui um dos mais profundos mistérios da criação de Deus que a integralidade não foi atribuída à pessoa individualmente, mas está repartida entre ambos os indivíduos, homem e mulher”. Essa ordem dual é uma ordem original que abarca toda a vida orgânica. Porque toda a vida provém de Deus, ela traz em si a impulsão de expandir-se incessantemente por meio dessa dualidade.
A exigência de Jesus em relação à mulher trouxe como consequência a importância de sua posição na história universal. O islamismo apresenta-nos ainda hoje o desprezo à mulher. Precisa usar véu na hora de sair à rua. É trancada no harém. Isso demonstra que, para o mundo dos homens, a mulher deve ser tão pouco visível quanto possível, pois ela nada mais é que o ser que seduz para o pecado. Em algumas sinagogas as mulheres ainda hoje precisam assentar-se no balcão elevado, atrás das grades, para que permaneçam invisíveis aos homens.
“Jesus libertou homens e mulheres uns para os outros da força dominante da sensualidade. Contudo, a premissa desse novo relacionamento é ser discípulo. Quando falta essa premissa, a liberdade facilmente torna-se atrevimento, e a bênção transforma-se em maldição” (Bornhäuser).
Chegamos à segunda parte:

29,30 Se o teu olho direito te faz tropeçar, arranca-o e lança-o de ti; pois te convém que se perca um dos teus membros, e não seja todo o teu corpo lançado no inferno. E, se a tua mão direita te faz tropeçar, corta-a e lança-a de ti; pois te convém que se perca um dos teus membros, e não vá todo o teu corpo para o inferno.
Estas palavras devem ser entendidas em sentido figurado. Elas querem apontar para a resolução incondicional de renunciar inteiramente a tudo o que, de uma maneira ou outra, pode afastar da fé e levar ao pecado. O rigor da formulação: Arranca o olho, corta a mão comprova como Jesus leva extremamente a sério a luta pela pureza, e que influência enorme ele atribui aos membros de nosso corpo no esforço em seguir a Jesus.
Cabe lembrar especialmente aos jovens que há tantas coisas que o olho lê e vê em figuras que podem tornar-se uma tentação, e que a mão sempre de novo quer agarrar essas coisas. Neste momento só existe uma palavra: “Não olhe! Tire isso daqui!” (cf. Pv 1.10; Eclo 21.2!).
Nesse contexto citemos uma palavra séria de Karl Heim: “O flerte e a brincadeira superficial entre jovens, o assim chamado ”ficar” apenas para divertimento, é condenável tanto do ponto de vista biológico quanto do bíblico. O relacionamento frívolo que um rapaz inicia com uma moça, querendo depois tratar outras do mesmo modo, é um grave ataque ao fundamento do matrimônio, muito mais do que um noivado desfeito, cujas intenções eram sérias. Não existe somente o adultério dentro do matrimônio, causado por infidelidade, mas também existe o adultério antes do casamento e fora dele, no qual acontece algo que dissolve toda a ordem do matrimônio como tal!”
Chegamos à terceira parte:

31,32 Também foi dito: Aquele que repudiar sua mulher, dê-lhe carta de divórcio. Eu, porém, vos digo: qualquer que repudiar sua mulher, exceto em caso de relações sexuais ilícitas, a expõe a tornar-se adúltera; e aquele que casar com a repudiada comete adultério.
Para compreendermos bem o que Jesus está dizendo sobre a questão do divórcio, é necessária uma descrição exaustiva do divórcio facilitado naquela época pela prática dos fariseus. Não conseguimos sequer imaginar o quanto eram trágicas a confusão e a destruição nessa área.
O documento de divórcio protegia a mulher de ser arbitrariamente mandada embora de casa. O documento de divórcio servia de atestado de que a mulher separada podia contrair novo matrimônio.
De modo muito leviano, porém, o farisaísmo definia, com base em Dt 24.1, os motivos pelos quais uma o homem podia despedir sua mulher. De acordo com essa passagem, um homem podia demitir sua esposa com uma carta de divórcio quando tivesse encontrado nela coisa indecente (vergonhosa).
Apesar de Deus ter estabelecido que o matrimônio é indissolúvel, que “os dois são uma só carne”, e que o ser humano age contra a vontade de Deus quando desfaz o casamento, Moisés (e não Deus) tinha permitido, porém não ordenado, o divórcio. “Por causa da dureza do coração” (Mt 19.8) Moisés tinha permitido a separação, regulamentando -a na lei. O homem não podia dissolver o casamento por um motivo qualquer, mas somente “se encontrasse algo indecente nela”.
Havia muita discussão no tempo de Jesus em torno da palavra “indecente”. Os adeptos do mestre da lei Shammai entendiam-na como adultério. Contudo, de Dt 22.20ss conclui-se que a interpretação não pode ser adultério, porque este era castigado com apedrejamento. Logo, em caso de adultério não haveria necessidade de uma carta de divórcio.
Os seguidores do mestre Hillel entendiam “coisa indecente” como tudo que o homem pudesse usar como pretexto para uma separação, até coisas inofensivas, de modo que, enfim, cada homem podia alegar qualquer motivo para despedir a esposa. Bastava uma sopa queimada ou outra mulher que agradava mais ao homem. Outros motivos eram: não ter filhos, que a mulher comeu ou bebeu na rua etc. É preciso ler Ml 2.13-15 para ter uma impressão arrasadora das consequências que a facilidade de divórcio inventada pelos fariseus trouxe para o mundo das mulheres.
A facilidade do divórcio tinha solapado, especialmente no judaísmo do tempo de Jesus, o fundamento da fidelidade matrimonial, levando a mulher a uma dependência do marido como se fosse escrava. Pelo motivo mais fútil o matrimônio podia ser dissolvido rapidamente. Ele era apenas um contrato com curto prazo de rescisão.
Tudo isso é uma abominação para Deus. Ele odeia esse divórcio. É verdade que também havia matrimônios que continuavam unidos apesar de não gerarem filhos (veja Isabel e Zacarias). Mas no geral as separações aconteciam a todo vapor. Os cinco maridos da mulher samaritana são o exemplo mais impactante dessa compreensão leviana do matrimônio.
Para Deus o matrimônio é uma ordem divina e indissolúvel, por isso ele rejeita o divórcio. Somente num único caso Jesus permite a separação, a saber, por causa de adultério!

Sinceridade incondicional é a única garantia da verdadeira fraternidade, 5.33-37

Também ouvistes que foi dito aos antigos: Não jurarás falso, mas cumprirás rigorosamente para com o Senhor os teus juramentos.
Eu, porém, vos digo: De modo algum jureis; nem pelo céu, por ser o trono de Deus; nem pela terra, por ser estrado de seus pés; nem por Jerusalém, por ser cidade do grande Rei.
Nem jures pela tua cabeça, porque não podes tornar um cabelo branco ou preto.
Seja, porém, a tua palavra: Sim, sim; não, não. O que disto passar vem do maligno.
Recordando Lv 19.12, Jesus reafirma a proibição do perjúrio. Depois apoia-se em Nm 30.3 e Dt 23.21s, exigindo o cumprimento de todos os juramentos dados a Deus. Agora Jesus se volta com clareza e determinação contra o abuso que os fariseus faziam naquela época com o juramento, e contra as exageradas minudências de interpretação quanto a juramentos válidos e inválidos. Diante dos requintes de casuísmos, Jesus afirma a santidade de Deus e a santidade do juramento que compromete incondicionalmente.
De acordo com Jesus, na vida diária não há necessidade nenhuma de juramento para asseverar e confirmar a verdade. Somente a sinceridade total, sem um juramento de garantia, assegura a verdadeira fraternidade. É que os escribas também recorriam, a toda hora, aos juramentos, inclusive para assuntos da vida cotidiana (p. ex., juro que almocei).
Além disso os escribas ensinavam: Não se deve jurar falsamente. O que se prometeu ao irmão apelando para o nome de Deus, precisa ser cumprido incondicionalmente. Todavia, quando alguém jurou em nome do céu, ou da terra, ou de Jerusalém, ou de sua cabeça, esse juramento não precisa ser obedecido. Um exemplo de singular hipocrisia o Senhor apresenta em Mt 23.16ss. Os fariseus eram espertos para fazer uma série de distinções minuciosas: quem jura pelo templo, não precisa cumprir o juramento, mas quem jura pelo ouro do templo tem de cumprir sua palavra, sob pena de tornar-se culpado etc.
Jesus interfere firmemente nesse emaranhado mentiroso de juramentos válidos e inválidos, que são apenas manobras de enganar o próximo para trapaceá-lo (pois quem saberia se situar entre o que vale e o que não vale!). Jesus dilacera tudo, pois constitui não apenas falta de sinceridade perante o próximo, mas também abuso vergonhoso do nome de Deus. Jesus afirma: Vocês sequer devem jurar, vocês não devem fazer uso de todos esses juramentos de corroboração e juramentos compromissivos e não compromissivos. Vocês se enganam se pensam que, com essas artimanhas, podem escapar da maldição divina. Com todas essas fórmulas ajeitadas, que citam o céu e a terra, não se pode enganar a Deus nem esquivar-se dele. Pois o céu é o trono de Deus e a terra o estrado dos seus pés (Is 66.1), e Jerusalém é a cidade do grande rei (Sl 48.2). Afinal, em todos esses juramentos o próprio Deus santo está envolvido. Mesmo jurar pela própria cabeça significa jurar por Deus, pois é Deus quem sustenta a nossa vida, não nós. Por isso também o juramento pela própria cabeça exige cumprimento radical. Schlatter diz: “Ao dispor arbitrariamente sobre coisas que não pertencem ao homem, mas a Deus, o ser humano abandona a posição que Deus lhe havia atribuído”.
O discípulo deve dizer sim ou não, i. é, ser sincero. Todos os subterfúgios e promessas são do maligno, i. é, do diabo (cf. Mt 13.19, onde o diabo é chamado “o maligno”). Quanto à palavra do
sim-sim e não-não, cf. Tg 5.12!
Com isso Jesus colocou o relacionamento fraterno sob a ordem singela e simples da sinceridade e pureza.
Para terminar, é preciso dizer que o Senhor não proibiu o juramento perante o tribunal. Segundo Mt 26.63 o próprio Jesus deixou-se colocar sob juramento.

O amor que supera tudo, 5.38-48

38-42 Ouvistes que foi dito: Olho por olho, dente por dente. Eu, porém, vos digo: não resistais ao perverso; mas, a qualquer que te ferir na face direita, volta-lhe também a outra; e, ao que quer demandar contigo e tirar-te a túnica, deixa-lhe também a capa. Se alguém te obrigar a andar uma milha, vai com ele duas. Dá a quem te pede e não voltes as costas ao que deseja que lhe emprestes.
Na linguagem dos teólogos essas frases muitas vezes recebem o título: O ius talionis, i. é, o direito ou lei da retaliação.
Pode-se falar de um tríplice direito de retaliação: a retribuição do eu, do direito, e do amor.
Sobre a retaliação do eu: A pulsão mais profunda do ser humano é, por natureza, o seu impulso de preservação. Enquanto essa pulsão se move dentro de parâmetros saudáveis, ela é algo natural. Ela se torna demoníaca quando tenta se impor violentamente sem escrúpulos. Então, exterioriza-se na vontade de dominar, de ser importante, no egoísmo, na ganância, no espírito vingativo, na inveja, no ressentimento, no ódio etc. Retribui-se o mal com coisa pior. Ofensa é devolvida com ofensa mais grave. Uma pequena censura é respondida com um discurso irado. Azeite é jogado no fogo. Age-se a partir da emoção, da irritação momentânea. O mal cresce. O relacionamento pessoal fica envenenado. O convívio torna-se insuportável. Em suma, a retaliação do eu manifesta-se desenfreadamente. Quando se dá livre curso à retaliação do eu, o fim será dissolução, decadência, anarquia, caos, guerra de todos contra todos.
Acerca da retaliação do direito: para que a retaliação do eu não possa soltar-se sem controle e destruir tudo, foi introduzida por Deus neste mundo caído a ordem jurídica, que construiu sua forma sólida no sistema de estado. Sobrepujar o mal com coisa pior é coibido pela legislação estatal. A lei exige retaliação justa. O pecado precisa ser expiado. À transgressão precisa seguir o castigo. O montante da reparação é medido pela grandeza da transgressão. Olho por olho, dente por dente. A morte culposa é reparada de maneira diferente que o assassinato doloso. A pena está na relação correta com a ação. Essa retaliação jurídica é um degrau superior da retaliação do eu. A retaliação feroz do eu foi controlada.
Quanto à retaliação do amor: É nela que os discípulos devem se exercitar. Esse é o manda mento de Jesus para eles. Falam dela os v. 39-42, assim como os versículos finais do cap. 5.
Não resistais ao perverso, isso significa: Discípulos de Jesus nunca buscam para si próprios a vingança. Para eles vale que é melhor sofrer do que cometer injustiça. Ao mal respondem com o bem.
Segue-se a palavra da bofetada. Todo judeu no tempo de Jesus sabia o que significava bater na face direita de alguém, a saber, era o injurioso golpe com o lado exterior da mão, desferido com a mão direita contra a face direita do outro. De acordo com o código civil judaico, punia-se a pessoa que feria desse modo a honra de outra, com 400 sus (cerca de 160 dólares).
Quando Jesus fala em seu modo figurado: Vocês discípulos devem sempre aceitar pacientemente a bofetada e estar preparados para suportar a segunda, está querendo expressar duas coisas:
• Como meus discípulos, vocês devem ver por detrás desse ultraje a mão de Deus que os está educando. Tudo serve a vocês para o melhor;
• Como meus seguidores, vocês não devem tomar a vileza do outro como padrão da conduta de vocês. No seu modo de proceder, vocês não devem deixar-se governar pela maldade do outro. Não devem tornar-se escravos dos outros. Escravo de seus caprichos e atos maldosos, que retribuem com injustiça ainda maior, e ofensa ainda mais grave. Contudo, vocês, discípulos, devem ser interiormente livres em seu comportamento diante do próximo, bem independentes da atitude dele. Não é o falar e agir do outro que deve determinar vocês, mas unicamente a palavra de Deus. Vocês, discípulos, são grandes demais para que o agir dos outros pudesse afetá-los em alguma coisa. O discípulo de Jesus não precisa perguntar pela opinião caluniosa de um ateu, que não deixa de ser falso e de fôlego curto como o próprio descrente! O braço de Deus é mais longo. Ele sabe de cada palavra que causou zombaria e dor. É melhor sofrer injustiça do que pessoalmente cometer a menor injustiça em pensamentos, palavras e ações (fuja do pecado como de uma serpente!).
Assim é que precisamos entender a palavra da bofetada. Todos os versículos seguintes até o final do capítulo sublinham o que dissemos sobre a retaliação do amor e confirmam o que já afirmamos sobre o amor ágape. Pois o amor ágape é o amor que ama aquele que não é digno nem merece o amor, que por sua conduta e ações perdeu o direito ao amor, que distribuiu uma bofetada após a outra ao seguidor de Cristo. Amar uma pessoas dessas, incessantemente, é isso que dizem as instruções do Salvador. Isto não levanta a pergunta: Será que esse procedimento não abre as portas para qualquer injustiça, sim, não se cria e fomenta a injustiça dessa maneira, para que se alastre mais e mais? Por isso, a palavra da bofetada não seria uma palavra irracional, uma afirmação que passa bem ao largo da realidade?
É preciso refletir sobre essa questão. A resposta é dada pelo exemplo do próprio Jesus. Continuando na figura da bofetada, deve ficar claro que os golpes desonrosos não fazem triunfar a injustiça e a maldade, mas que existe alguém que julga corretamente, sim, que pode converter injustiça em bênção, que pode tornar bom aquilo que as pessoas queriam fazer por mal. É isso o que a sabedoria divina produz.
O fundo histórico dos v. 40-42 é o seguinte: a palavra da túnica e da capa leva para dentro do processo de julgamento civil do povo judeu.
Na prática dos fariseus, um credor tinha o direito de exigir do devedor um penhor, por exemplo sua túnica ou capa. Quando não o recebia por bem, podia exigi-lo por meio de um processo. Contudo, segundo Dt 24.10-13, deveria ceder a roupa ao dono de acordo com as necessidades para o uso de dia ou de noite. Em contraposição e essas posições jurídicas mesquinhas, os credores e devedores, se forem discípulos de Jesus, devem estar dispostos tanto a desistir do penhor como a entregá-lo. Pois o importante não é a demanda jurídica, e sim a prática do amor e da misericórdia.
A próxima metáfora do Senhor, sobre a segunda milha, refere-se ao costume judaico de acompanhar um viajante. Do perigo de se viajar sozinho desenvolveu-se a obrigação do acompanhamento. Quando este não era feito e acontecia uma fatalidade, era responsável a comunidade local em cuja área ela acontecera. O fariseu defendia a posição: Acompanho somente meu colega. Ao homem comum, que está abaixo do meu nível, ao “pecador”, esse eu não acompanho. O discípulo de Jesus, por sua vez, deve comportar-se diferente: ele “deve estar disposto a prestar qualquer escolta”, sim, a andar uma segunda milha além da milha obrigatória.
Novamente encontramos o princípio de não demandar na justiça, mas ir ao encontro, antecipar-se de modo cordial e prestativo.
A última figura, do pedir, quer expressar que os discípulos de Jesus, na ampla área de amizade e solicitude entre vizinhos, emprestam com prazer e não devem jamais fazer uma distinção entre merecedores e pessoas indignas.
Chegamos ao final desse trecho que nos ilustra de modo penetrante a grande palavra da retaliação do amor. Somente ela, que não tem nada a ver com a retaliação do eu ou da lei, constitui a diretriz para a nossa vida no seguimento de Jesus. Ela não tem validade na vida dos estados e povos, porque, conforme dizíamos no início, faltam ao não-discípulo todas as premissas para ela. Também essas palavras do Senhor, ao serem cumpridas, devem fazer brilhar o novo reinado de Deus na comunidade de Jesus – e então também para fora dela – até que ele venha.
Os apóstolos entenderam as exigências de Jesus (cf. Rm 12.17,21; 1Ts 5.15; 1Co 13.7; 1Pe 2.18-23; depois 3.9 etc.).
Constantemente é preciso vencer o mal com o bem. O gelo não derrete com tempestade e geada, mas sim com calmaria e calor do sol. Ódio e desejo de vingança, egoísmo e ira, a língua maldosa e o coração endurecido são dissolvidos pelo amor, pela retaliação do amor, p elo amor ágape.

43-48 Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, vos digo: amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem; para que vos torneis filhos do vosso Pai celeste, porque ele faz nascer o seu sol sobre maus e bons e vir chuvas sobre justos e injustos. Porque, se amardes os que vos amam, que recompensa tendes? Não fazem os publicanos também o mesmo? E, se saudardes somente os vossos irmãos, que fazeis de mais? Não fazem os gentios também o mesmo? Portanto, sede vós perfeitos como perfeito é o vosso Pai celeste.
Mais uma última vez neste capítulo Jesus faz reluzir com força a palavra da retaliação do amor ágape!
Para entendermos a palavra do amor ao inimigo, precisamos olhar para Lv 19. Com grande densidade se declara, nesse capítulo, a vigência dos deveres de amar o amigo, irmão e concidadão.
Aos poucos os fariseus, que eram apenas uma parte restrita do povo, passaram a interpretar esse capítulo no sentido de que todos os deveres de amor arrolados tinham validade somente para o círculo deles. O fariseu chamava de irmão, companheiro, amigo e próximo apenas a outro fariseu. Os demais eram para ele somente povo comum. Por isso o fariseu desprezava “o outro” (Lc 18.9).
Faziam parte dos “outros” os publicanos e pecadores, que não cumpriam os mandamentos de Deus.
A consequência era a inimizade entre os fariseus e “os outros”, os publicanos e pecadores (am haarez = povo comum). Essa inimizade entre fariseus e pecadores não perdia em nada para a inimizade entre judeus e gentios, e às vezes até era mais forte (Tt 3.3).
Na opinião dos fariseus tratava-se de uma inimizade por causa de Deus. Pensavam no Salmo 139.21s: “Não aborreço eu, Senhor, os que te aborrecem? […] Aborreço-os com ódio consumado; para mim são inimigos de fato”. Por isso os fariseus achavam que, por amor a Deus, precisavam odiar todos aqueles que não cumprem os mandamentos de Deus. Sim, diziam até que o povo, que não sabe nada da lei, é maldito (cf. Jo 7.49)! Jesus, agora, afirma: Amem os seus inimigos! Desse modo ele anula todo o ódio como tal. Inclusive o chamado ódio religioso! Não é essa a atitude que convém ao ser humano. Pois a missão de Jesus não era odiar os pecadores; ele veio para salvar os pecadores… Ao dizer, ainda, para aos discípulos: Orem pelos que perseguem vocês, ele está se referindo aos perseguidores como sendo os fariseus, pois eram eles que perseguiam Jesus e também seus discípulos. – Portanto, seguidores de Jesus devem reagir à inimizade com amor, à perseguição com oração. – Assim, brilha mais uma vez com toda clareza a lei da retaliação do amor ágape!
O que Jesus está exigindo é imenso. É algo de que, por nós próprios, não somos capazes. Cabe ir ao encontro de toda pessoa com o amor ágape, mesmo daquela que não é digna e merecedora de amor. O discípulo de Jesus tem de fazer sempre o “totalmente diferente”, o contrário do que faria a pessoa do mundo. Se saudardes somente os vossos irmãos, que fazeis de mais? Não fazem os gentios também o mesmo? Vocês seguidores de Cristo têm a realizar o “especial”. No uso oriental, a saudação era muito mais que apenas um cumprimento. Significava proferir um voto de bênção sobre o outro. A saudação era: “Paz seja com você!”
Os fariseus saudavam somente seus iguais, não os publicanos e pecadores que, para eles, representavam a “escória da humanidade”, os “traidores da pátria”. O que, porém, Jesus diz aos seus discípulos é incrível, supera tudo o que foi dito até aqui. Essas palavras de Jesus revelam novamente com máxima clareza o que expusemos já no início, a saber, que o sermão do Monte de Jesus é a inversão de todos os valores! Ao caminho do ser humano, do eu, da retaliação do eu, da imposição o eu, Jesus contrapõe decisivamente o caminho de Deus, da retaliação do amor. Ao caminho do homem natural opõem-se diretamente as pegadas de Cristo!
Jesus diz: Vocês, meus seguidores, devem saudar e abençoar também aqueles que não fazem parte do círculo de vocês, dos bons conhecidos, parentes e pessoas íntimas, daqueles que são amigáveis e simpáticos. Vocês também têm de amar, saudar, honrar e até antecipar-se com respeito e proferir palavras de bênção aos seus inimigos, aos adversários, aos que dificultam e azedam a vida de vocês, que injuriam e magoam, ferem e ofendem, que perseguem vocês! Se fizerem isso, realizam o “especial”, o que “diverge totalmente” daquilo que o mundo faz. Vocês são chamados para esse procedimento “especial” e “totalmente diferente”. Através desse agir vocês concretizam aquilo que o Pai celeste de vocês também está fazendo sem cessar, a saber, fazendo subir diariamente o sol sobre bons e maus e chover sempre de novo sobre justos e injustos.
Do mesmo modo como age o seu Pai no céu (v. 48), também vocês devem agir. Em outras palavras: Em todas as circunstâncias, vocês, discípulos, deve m ter a natureza que tem o seu Pai. Assim como o seu Pai é o totalmente diferente, também vocês devem ser totalmente diferentes, ou seja, devem responder ao ódio com o amor ágape, à perseguição com oração.
Essa é a tarefa mais elevada e mais difícil. Sobrecarrega todos as nossas forças. É humanamente impossível!
Do mesmo modo como um grande pianista não esgotou o aprendizado do piano no tempo de sua formação, mas continua se dedicando diariamente, com fidelidade incansável e trabalho miúdo em particular, a exercitar seus dedos, a fim de tornar-se um artista completo, também os seguidores de Jesus precisam exercitar-se incessantemente, no trabalho miúdo da oração em particular, a fim de preparar o caminho para a perfeição do reino de Deus.
Fonte: Mateus - Comentário Esperança

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