Enquanto enviado especial das Nações Unidas para a Síria, Staffan de Mistura, procura em Damasco estabelecer as condições para o cumprimento de um acordo de cessar-fogo nacional, o Governo da Turquia tenta convencer os seus aliados, principalmente os Estados Unidos, da necessidade de intervir militarmente em território sírio, citando as incursões aéreas da Rússia e os avanços das milícias curdas do YPG (Unidades de Defesa do Povo) em direcção à fronteira como ameaças iminentes.
“Queremos uma operação terrestre [na Síria] e estamos a discutir essa possibilidade com os nossos aliados”, informou um dirigente turco, citado sob anonimato pelas agências internacionais. “Naturalmente a Turquia não tomará nenhuma iniciativa unilateral, mas se houver consenso, garantimos a participação do nosso Exército”, prosseguiu o mesmo responsável, considerando que “sem uma intervenção ninguém conseguirá parar a guerra”.
Antes da Turquia, já a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos tinham defendido o envio de tropas internacionais para o teatro de guerra na Síria. Tal como Ancara, Riad manifestou prontidão para integrar uma coligação, desde que os EUA assumissem a liderança das operações – no entanto, enquanto a Arábia Saudita justifica a entrada no conflito com a luta contra o Estado Islâmico, a Turquia está preocupada com a “operação brutal” em curso junto à sua fronteira.
“Neste momento, a Rússia, ao lado do regime de Bashar al-Assad, está a desenvolver uma operação brutal contra civis. Estes ataques destinam-se a criar uma faixa para a infiltração das forças do YPG. Por isso, gostaria de recordar aos nossos aliados ocidentais: são organizações terroristas, e aqueles que os apoiam não serão perdoados pela História”, declarou o Presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan.
Para além da incursão terrestre sobre a Síria, Ancara voltou a defender a criação de uma “zona tampão” junto à fronteira, para acolher os milhares de refugiados que procuram escapar dos combates na província de Alepo. Essa ideia foi rejeitada, há meses, pelo Presidente dos EUA, Barack Obama, por implicar não só a criação (em paralelo) de uma zona de exclusão aérea como exigir o destacamento de tropas para o terreno.
Mas o aprofundamento da crise humanitária na fronteira, para onde convergiram centenas de milhares de refugiados em fuga dos bombardeamentos russos, já levou por exemplo a chanceler alemã, Angela Merkel, a reconsiderar a proposta. Para a Turquia, essa zona de segurança, que pode esticar-se por mais de dez quilómetros, ganhou uma nova importância estratégica, uma vez que serviria de travão aos avanços das milícias curdas do YPG, que Ancara classifica como forças rebeldes e acusa de conluio com a aviação russa. “Os combatentes do YPG são mercenários pagos pela Rússia”, acusou o primeiro-ministro, Ahmet Davutoglu, no Parlamento.
Pelo quarto dia consecutivo, a artilharia turca disparou contra as unidades turcas no lado sírio da fronteira. Ancara quer proteger as localidades de Azaz e Tal Rifaat, que são o último elo de ligação entre as forças anti-Assad – e podem cair a qualquer momento para os curdos ou o exército sírio.
Atendendo aos últimos desenvolvimentos, o compromisso alcançado em Munique no final da semana passada para uma “cessação das hostilidades” na Síria parece impraticável, desde logo porque a Rússia – que em Setembro iniciou uma campanha aérea que devolveu a iniciativa ao Presidente sírio depois de cinco anos de guerra – se manifestou “desobrigada” de suspender os seus ataques contra alvos jihadistas.
Interpretações de Assad
O Presidente da Síria não perdeu tempo a lançar suspeitas sobre uma pausa no conflito. “Ouvimos dizer que querem uma trégua. Muito bem. E quem é capaz de garantir as condições para que isso aconteça dentro de uma semana? Ninguém”, afirmou, citado pela CNN. Segundo a agência estatal síria SANA, o acordo de cessar-fogo “não exige a paragem das operações de contra-terrorismo”, que na interpretação do Presidente são aquelas que se destinam a derrotar “quem levanta armas contra o Estado ou ataca o povo sírio”.
Antes da data proposta para o cessar-fogo, o exército intensificou a sua campanha contra as forças rebeldes no Norte, acrescentando duas novas localidades à lista das suas conquistas na província de Alepo: a queda daquela cidade, a maior do país antes do início da guerra, poderá acabar definitivamente com as esperanças da oposição no fim do regime.
As forças governamentais lançaram ainda uma nova ofensiva a partir de Latakia, a cidade portuária que é o reduto dos alauitas, a minoria religiosa a que pertence a dinastia Assad. “Se os rebeldes perderem Kansaba, todo o território de Latakia fica nas mãos do regime”, disse à Reuters o líder do Observatório Sírio para os Direitos Humanos, Rami Abdulrahman.
Indiferente ao cepticismo e às provocações de Assad, o enviado especial da ONU para a Síria lembrou esta terça-feira que o Governo de Damasco aceitou os termos para a trégua, nomeadamente a abertura de corredores humanitários que permitam o “acesso desimpedido a todas as zonas actualmente debaixo de cerco” – actualmente há 14 localidades sitiadas. A cidade de Alepo ainda não figura nessa lista oficial, embora as tropas do regime, com o apoio de combatentes do Hezbollah e milícias iranianas dirigidas por comandantes dos Guardas da Revolução, tenham cortado todas as vias que garantiam o abastecimento.
No final da sua reunião com o ministro dos Negócios Estrangeiros da Síria, Staffan de Mistura disse que a ONU tenciona pôr a palavra do regime à prova já a partir desta quarta-feira, com a partida de uma série de colunas de assistência humanitária para diferentes pontos do país. “É obrigação do Governo da Síria permitir que a ajuda distribuída pelas Nações Unidas chegue ao seu destino”, notou. Pouco depois, a porta-voz da agência humanitária da ONU confirmava ter recebido luz verde de Damasco para a entrada em sete zonas cercadas, entre as quais Mouadamiya al-Sham, nos arredores de Damasco, e Deir al-Zor.
O enviado especial da ONU também discutiu a retoma das negociações de paz em Genebra, suspensas no início do mês por causa dos combates na província de Alepo, e que Staffan de Mistura quer ver reatadas no próximo dia 25. “Ele precisa de ser realista. Enquanto as bombas continuarem a cair e as populações a ser massacradas ou esfomeadas por pressão do regime, as negociações não vão acontecer”, comentou o ministro turco dos Negócios Estrangeiros, Mevlut Cavusoglu, numa entrevista à Reuters.
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