O achado dos beduínos representou uma das maiores conquistas arqueológicas do século XX. Atraídos pela descoberta inicial, pesquisadores vasculharam a área, localizada na região noroeste do Mar Morto e, ao longo de nove anos, entre 1947 e 1956, trouxeram à luz 930 manuscritos que estavam guardados em 11 cavernas de Qumran. Desse total, 210 reproduzem livros da Bíblia hebraica – que os cristãos chamam de Antigo Testamento –, principalmente os evangelhos de Salmos (36 cópias), Deuteronômio (32) e Gênesis (23). Entre os manuscritos não bíblicos estavam o Manual de Disciplina ou Regra da Comunidade, que descreve as práticas e rituais da seita que produziu os manuscritos; os Hinos de Ações de Graças e o Documento de Damasco; e outro texto que retrata o cotidiano da seita. Escritos em sua maior parte em hebraico (também em aramaico e em grego), os documentos foram datados entre 250 a.C. e 68 depois de Cristo.
Setenta anos depois da façanha involuntária dos dois beduínos, pesquisadores de várias partes do mundo ainda discutem o significado da descoberta do que ficou conhecido como os Manuscritos do Mar Morto. No Brasil, o debate foi enriquecido com o lançamento, em setembro deste ano, do livro Manuscritos do Mar Morto – 70 Anos da Descoberta, organizado por Fernando Mattiolli Vieira e publicado pela editora Humanitas, ligada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
Essênios?
Ainda hoje existem divergências em relação à identidade da comunidade de Qumran, informa o pesquisador Edson de Faria Francisco, da Universidade Metodista de São Paulo, autor de um dos artigos do livro. Para uma parcela considerável dos pesquisadores, esse grupo poderia ser identificado com os essênios, um dos vários ramos do judaísmo que floresceram entre o século II antes de Cristo e os primeiros anos da era cristã – entre eles, os fariseus, os saduceus e os zelotes. Escritores antigos como Fílon de Alexandria, Flávio Josefo e Plínio, o Velho citam esse grupo, mas não há consenso entre os especialistas sobre as informações fornecidas por eles, de acordo com Edson Francisco. "A identificação da comunidade de Qumran com os essênios continua em aberto até o presente momento", comenta o pesquisador.
Mas, as incertezas não se limitam apenas à identidade do grupo responsável pela criação dos manuscritos. Em seu artigo, Dennis Mizzi, da Universidade de Malta, cita várias outras questões que ainda constituem enigmas. "Setenta anos depois, o trabalho mal começou", escreve o pesquisador maltês. Por exemplo, há dúvidas sobre a cronologia e o uso dos edifícios construídos a partir do século XVIII antes de Cristo no topo do platô que dá vista para a costa noroeste do Mar Morto – que, em princípio, não foram associados aos manuscritos –, hoje em ruínas. Existem teorias que consideram Qumran não apenas um mero assentamento sectário essênio, mas um espaço de culto ou um centro de purificação ritual ou até mesmo um centro de produção de pergaminhos para a composição de manuscritos.
O tamanho da população que viveu nas colinas de Qumran também é motivo de disputa. Dependendo da teoria adotada, o lugar pode ter abrigado entre 10 e 100 pessoas. Há dúvidas se essas pessoas viviam no assentamento ou nas cavernas. Mizzi elenca ainda outros mistérios: "Quando os manuscritos chegaram em Qumram? Quem os levou para lá? Por que foram depositados em cavernas e quando exatamente? Qumran era uma 'biblioteca'? Todos os manuscritos foram usados no assentamento? Alguns vieram de outros 'assentamentos sectários' relacionados? Essas são algumas das questões não resolvidas, e o trabalho futuro da arqueologia dos manuscritos poderá clarear alguns deles", diz o estudioso da Universidade de Malta.
Para Dennis Mizzi, as investigações sobre os Manuscritos do Mar Morto deveriam estar mais integradas com a pesquisa em antiguidade clássica, e não ficar restritas aos campos do judaísmo antigo e dos estudos bíblicos, como ocorre atualmente. "Qumran era, essencialmente, parte do mundo mediterrâneo. Nesse sentido, é também um sítio clássico e, por isso, sua interpretação deveria ser contextualizada por tal base", diz o pesqusiador no livro publicado pela USP.
Fonte: Segredos da Arqueologia Bíblica
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